M. Night Shyamalan foi um cineasta que ficou superestimado após a trinca O Sexto Sentido (The Sixth Sense, 1999), Corpo Fechado (Unbreakble, 2000) e Sinais (Signs, 2002) e então passou a ser subestimado, levando pancada de crítica e público. A maré voltou a subir com Fragmentado (Split, 2016), uma boa e saudável mistura de gêneros, continuação do conceito criado em Corpo Fechado, que o espectador só descobre ao final. Shyamalan entregou suspense, terror e drama em um caldo que deu liga a um longa instigante, capaz de fascinar e assustar a audiência sobre um homem vítima de abusos na infância que desenvolve personalidades múltiplas, incluindo uma super humana.
A história de David Dunn (Bruce Willis) e sua antítese, Elijah Price (Samuel L. Jackson) deu a reputação a Corpo Fechado de uma “história em quadrinhos para leitores adultos”, sendo considerado por muitos o melhor filme de super herói criado direto para o cinema até aquela ocasião, para uma audiência carente de adaptações dos quadrinhos. O Homem Aranha de Sam Raimi ainda não tinha ganhado o mundo, tampouco a Marvel tinha aparecido com o primeiro longa do Homem de Ferro. Foi o mais sério e adulto filme a lidar com o gênero a ir para as telas até então, trazendo uma história séria ainda que escorada, sem nenhuma vergonha, nos elementos do universo de papel. Até o recurso da aliteração, a repetição de fonemas parecidos no início das palavras, tão comum em personagens famosos como Peter Parker e Bruce Banner, foi utilizado por Shyamalan, vide David Dunn e Kevin Crumb.
Alan Moore certa vez declarou que as histórias em quadrinhos de super heróis estilo Marvel/DC não faziam sentido porque, apesar do surgimento desses seres, o mundo continuava o mesmo. Se, na vida real, um Super Homem surgisse de verdade, isso teria um impacto em todo o planeta, impacto que seria capaz de mudar o mundo como o conhecemos e compreendemos. Justamente esse tipo de situação que M. Night prepara e apresenta em Vidro.
Vidro começa após três meses dos eventos acontecidos em Fragmentado. David Dunn atua como um vigilante com a ajuda do seu filho, Joseph (Spencer Treat Clark), resolvendo pequenos casos, ganhando fama, mas conseguindo manter sua identidade em segredo. Agora, a dupla está no encalço do Horda (James McAvoy), o homem de 24 identidades, capaz de se transformar em uma “fera” de força sobre humana, que continua a raptar garotas para devorar. Quando finalmente Dunn e a fera se encontram, o combate atrai uma unidade da polícia que termina capturando ambos. A dupla é confinada em um sanatório sob os cuidados da Dra. Ellie Staple (Sarah Paulson), que também assumiu o tratamento de Elijah Price, o homem dos ossos de vidro que acredita ser um gênio do crime.
O objetivo da Dra. Staple é convencer seus três pacientes que eles sofrem na verdade de um delírio que os leva a acreditar que são personagens de histórias em quadrinhos. Contra todas as provas e testemunhas dos feitos extraordinários do trio, a psiquiatra fornece explicações científicas, lógicas e racionais que, aos poucos, os fazem duvidar de si mesmos. Elijah aparenta estar praticamente catatônico, mas na verdade planeja um modo de arquitetar a fuga dele e dos colegas, um plano que prevê mais um embate entre os super humanos para provar ao mundo que eles existem. Enquanto isso, o filho de Dunn, Casey (Anya Taylor-Joy), a garota poupada pelo Horda em Fragmentado e a mãe de Elijah, interpretada por Charlayne Woodard, tentam ajudar de alguma forma o trio.
Vidro termina concluindo de forma magistral uma adaptação de HQ que jamais fora produzida. Utiliza propositadamente os clichês mais infames do gênero, como o vilão e o herói, exatos opostos em seus poderes e objetivos, os coadjuvantes humanos, ou parceiros, que auxiliam os personagens principais, a luta entre dois “super heróis”, arquitetada pelo vilão, seguindo um plano secreto que só será revelado nos últimos minutos.
Em alguns momentos, Vidro lembra o que Wes Craven fez na franquia Pânico, seguindo explicitamente os clichês, mas entregando algo que parece novo. Em várias cenas, por exemplo, vemos a Dra. Staple, Joseph e Casey buscarem consultar referências em revistas em quadrinhos para entenderem o que está acontecendo e quais serão os próximos eventos, incluindo visitar a uma comic house.
O filme possui um clima soturno, ainda carregado pelo terror de Fragmentado, com trilha sonora que reforça o clima de tensão, tempo chuvoso e locais escuros, especialmente na primeira parte do longa, finalizando com a captura da Horda e de Dunn. Em seu segundo ato, se torna uma trama psicológica, dedicada a explorar o íntimo dos super seres, onde a psiquiatra procura entender as origens de seus supostos delírios para curá-los. O terceiro ato retoma a pancadaria, traz reviravoltas, revelações e amarra as pontas soltas levando a uma conclusão forte que pode deixar muita gente insatisfeita, apesar de atingir o objetivo do conjunto da obra. As cenas de luta não são apoteóticas como as dos filmes Marvel, mas são eficientes.
Vidro é o filme de super herói indicado para quem não suporta mais o subgênero. É algo novo feito com base em moldes antigos, já utilizados há tempos por autores dos quadrinhos como Alan Moore e até o Stravinsky de Poder Supremo. M. Night ainda presta até, de certo modo, uma homenagem ao próprio Stan Lee, fazendo ele mesmo, uma aparição no filme em um momento de auto referência e descontração.
Vidro (Glass, 2018)
Gênero: Dama; thriller
Diretor: M. Night Shyamalan
Elenco: James McAvoy, Bruce Willis, Samuel L. Jackson
Duração: 2h9min