Capaz de alterar nossa realidade interna e externa, a mente humana tem a habilidade de, como aponta o cientista Miguel Nicolelis, formar universos próprios. No filme Um Algum Lugar do Passado (Somewhere in Time, 1980), a mente, quando convencida, é capaz de até transpor as barreiras do tempo. Em Viagens Alucinantes, vai além, podendo alterar tempo, espaço e até estrutura.
No celebrado filme dirigido pelo britânico Ken Russell, o cientista Eddie Jessup (William Hurt), consegue projetar sua consciência à própria gênese do ser humano, afetando não apenas a realidade ao seu redor, mas metamorfosenado seu próprio corpo em uma jornada inacreditável.
Lidando com conceitos estudados nas últimas duas décadas por vários tipos de cientistas e curiosos, como viagens alucinógenas e experimentos sensoriais e psicológicos, o longa marcou uma geração. Apesar de seus efeitos visuais que talvez já fossem datados ainda na época de seu lançamento, a história concebida é tão impressionante que torna, afinal, essa limitação irrelevante.
Jessup e um colega cientista, financiados por uma Universidade, conduzem experimentos em um tanque de privação sensorial. Meio que uma moda da década de 60 e 70, o estudo consiste em se isolar em uma câmara com solução líquida, vetando quaisquer estímulos externos. Impedida de captar sons, odores, sensações e imagens, o cérebro, como que ativando um mecanismo de autoproteção, começa a projetar seus próprios estímulos, provocando alucinações ou sonhos vívidos.
Os estudos parecem não levar a lugar algum e são encerrados. Ainda procurando meios de retomá-los, Jessup viaja à América Latina onde participa de um ritual com uma tribo indígena mexicana, ingerindo uma substância alucinógena desconhecida que se mostra extremamente potente. Ao retornar aos Estados Unidos, usa amostras da bebida para retomar e incrementar as experiências de privação sensorial.
Usando o composto, o resultado é inacreditável. De alguma forma ele vivencia o início da humanidade, como se acessasse uma espécie de memória coletiva adormecida no próprio cérebro, o projetando para momentos de uma vida passada como ancestral do homem, ainda uma espécie de gorila. Eddie emerge da câmara com sua genética alterada. Sua viagem aparenta não ter sido apenas mental, mas física, como comprovam os testes médicos, apontando que, por dentro, se tornou basicamente um tipo de macaco.
O que seria um filme de ficção científica assume ares de terror quando o protagonista se metamorfoseia mesmo em um símio, involuindo para um estado pré-humano, atacando pessoas e animais tal qual em um filme de lobisomen.
Jessup é um homem incomum para a sua idade. Obcecado pelo conhecimento, é aquele tipo de gênio quase que incapacitado para vínculos de amizade ou relacionamentos afetivos. A coisa muda ao conhecer a antropóloga Emily (Blair Brown) em um encontro na casa do colega de laboratório. O magnetismo entre os dois é quase imediato e logo evolui para um casamento com filhos, união que se mostra estéril porque Eddie continua obcecado em descobrir o grande enigma da humanidade: a origem de tudo. A ciência toma todo o seu tempo e foco.
Um ponto interessante é o posicionamento da dupla de cientistas que o auxiliam na pesquisa. Robsenberg (Bob Balaban) é o que se poderia definir como agnóstico. Ele não confia cegamente no experimento, mas se mantém aberto aos resultados. Parrish (Charles Haid) é o cético completo, não acredita nem mesmo nos apontamentos científicos do evento. É algo mesmo tão absurdo que sua racionalidade não consegue ceder nem mesmo diante das provas que analisa.
A sequência final de Viagens Alucinantes tem um clima de Poltergeist, 2001 Uma Odisseia no Espaço e até de Os Caça-Fantasmas, excluindo o lado cômico do último. Os eventos que os colegas de Eddie e sua esposa vivenciam são inexplicáveis pela ciência até onde a conhecemos. A mente de Jessup desencadeia alterações da própria realidade ao seu redor, afetando inclusive as pessoas que o tocam. A cada vez que avança em suas descobertas, se afasta ainda mais da humanidade.
Ironicamente, a única coisa capaz de salvar sua existência como a conhece é o amor incondicional de sua esposa, o qual ele não conseguia corresponder em seu estereótipo de cientista frio e inconsequente. E é justamente esse amor, o calor humano frágil e sentimental, o elemento que, no momento crucial, aciona nele uma epifania que o faz enfim compreender o universo, alcançando o ápice da história.
Viagens alucinantes, a despeito do sucesso que fez na época, praticamente se tornou um filme cult, pouco mencionado até mesmo dentre o nicho do horror. Talvez não a junção de gêneros, mas o roteiro aberto, cheio de minúcias, com um protagonista pouco simpático, além de suas montagens de imagens e efeitos especiais digitais afastem aqueles que apreciavam algo mais convencional e direto como era explorado na era dos filmes slasher. Vale apontar que, se os efeitos digitais ficaram extremamente datados, o mesmo não vale para os efeitos práticos, especialmente os aplicados na metamorfose do protagonista em gorila.
A obra traz o mito do cientista que não se importa de morrer para satisfazer a sua sede de conhecimento. Sua mente está tão dominada pelo desafio, por ir além do que a humanidade conhece, que não visualiza o custo de sua ação, algo tido como comum no meio. Descobertas já custaram a vida de vários cientistas ao longo da história, como Marie Curie, que faleceu de leucemia devido aos estudos com radiação.
Viagens Alucinantes é o tipo de obra que poderíamos ver atualmente produzida pela A24, mas dificilmente encapada por um grande estúdio como foi o caso da Warner, inclusive na época. O projeto nasceu inicialmente do roteirista Paddy Chayefsky, baseado em seu livro States, publicado em 1978, inspirado pelas pesquisas de John C. Lilly sobre drogas psicoativas e tanques de isolamento. Chayefsky se desentendeu com o cineasta Arthur Penn, que abandonou a direção. Ken Russel assumiu e ocorreram vários embates com o roteirista, que não admitia qualquer alteração no texto. Como resultado dos conflitos que surgiram, o roteirista acabou expulso do set. Furioso, retirou seu nome dos créditos antes da edição final. Terminou falecendo no ano seguinte. Um triste fim de carreira para um profissional vencedor de três Oscars.
Quem nunca viu o filme e imaginou como seria entrar em um tanque de privação sensorial? Acontece que isso é possível. Ainda hoje o serviço é oferecido por várias empresas. A internet está repleta de relatos de pessoas descrevendo o que experienciaram durante pouco mais de uma hora imersas em um tanque, mas não esperem nada semelhante ao de Eddie Jessup.
Cenas Memoráveis
O elixir: No interior do México, Eddie consome um alucinógeno produzido por uma tribo indígena. A substância será utilizada para potencializar seus experimentos no tanque com consequências inimagináveis.
A metamorfose: Jessup emerge do tanque de privação com a genética alterada e começa a se metamorfosear em uma espécie de gorila, o elo perdido entre o homem e o macaco.
Poltergeist: Ao adentrar o tanque de privação sensorial mais uma vez, o cientista liberta forças primordiais, alterando a realidade ao seu redor e provocando um pandemônio no laboratório em um processo que pode ser apontado algo como um big bang.
Viagens Alucinantes (Altered States, 1980)
Direção: Ken Russell;
Gênero: Ficção científica;
Elenco: William Hurt; Blair Brown, Bob Baladan;
Duração: 1h42min