Um encadeamento de acontecimentos inusitados, imprevisíveis e aparentemente desconexos leva a uma investigação instigante em uma mistura de gêneros que forma uma das obras mais interessantes de 2018.
Morando em Los Angeles, Sam (Andrew Garfield) é ou se tornou uma espécie de vagabundo. Por alguma razão o cara largou ou foi demitido do trabalho e abraçou a lisura e o ócio, atrasando as prestações do carro e pagamento do aluguel do apartamento onde mora, mas não está nem um pouco preocupado com a ameaça iminente de despejo em alguns dias. O que o preocupa é a resolução de um mistério envolvendo um milionário morto em uma explosão e o desaparecimento de Sarah (Riley Keough), uma vizinha que ele acabara de conhecer, beijar e combinar um encontro no dia seguinte.
Esses acontecimentos parecem estar interligados e o lançam em uma investigação insana na qual surgem personagens bizarros, pistas absurdas, códigos secretos, acontecimentos insólitos, mortes e decepções que levam finalmente a um grande vilão, um mestre, uma figura oculta por trás de todo processo criativo industrializado que, afinal, pode ou não ser a revelação definitiva do sentido da vida.
Temos aqui uma grande homenagem à cultura pop em geral, especialmente ao cinema hollywoodiano, às histórias em quadrinhos, à música e ao universo dos games. O protagonista pode ser considerado um nerd qualquer, um sujeito cujo corpo infelizmente cresceu, mas que a mente continua pensando 100% do tempo em sexo, acha trabalhar um saco e não se importa com nenhum tipo de problema que poderia desesperar um homem comum, mesmo que seu comportamento o leve a se tornar um mendigo. O cara parece saber o que é mais importante que continuar financiando o capitalismo apesar de querer usufruir de todas as benesses que esse sistema produz. O protagonista é possivelmente um yuppie que não deu certo porque perdia muito tempo com entretenimento.
O apartamento de Sam é repleto de pôsters de filmes clássicos, como O Monstro da Lagoa Negra e Janela Indiscreta. Uma das cenas principais, que envolve um mergulho em um reservatório, que inclusive foi usada como base para um dos cartazes de divulgação, foi diretamente baseada em uma cena de Marilyn Monroe em seu último filme, Something’s Got to Give de 1962, cena que não fora completada devido à morte precoce da atriz. Em determinado momento, Sam acorda com um gibi do Homem Aranha grudado em sua mão, lambuzada com goma de mascar. No lugar, numa olhada rápida, ainda encontramos uma pilha de revistas da Nintendo Power, um Nintendinho e um toca discos, em uma mistura de moderno e retrô.
O filme possui um clima noir, construído com auxílio da trilha sonora, que instala um suspense sistêmico na mente do espectador, das mulheres fatais que surgem uma atrás da outra, levando a sexo e morte, e de figuras sinistras que se movem nas sombras. Perguntas, mistérios, pistas improváveis, mensagens em discos, mapas ocultos que revelam os segredos da Los Angeles que ninguém percebe são descortinados formando e desvendando sequências de mistérios que levam a mais mistérios. O longa também assume facetas do horror sobrenatural com a ameaça do “pio da coruja”, uma mulher que invade a casa das pessoas com propósitos homicidas, vestindo apenas uma máscara feita de penas de coruja, e simula um suicídio da vítima escolhida. Acredite: o andar inumano e silencioso da beldade a faz um dos monstros mais assustadores criados nesse gênero nos últimos 30 anos. E ainda tem o Rei dos Mendigos.
Além do mistério do desaparecimento da vizinha de baixo e do assassinato do milionário, em segundo plano, já imediatamente no início do filme, temos o caso de um misterioso matador de cães que tem apavorado a região. Durante o filme, há cenas aparentemente gratuitas que surgem apenas para desviar a atenção da trama principal, mas que são momentos que tornam a obra ainda mais interessante, um entretenimento se não cerebral, absurdamente estimulante, ainda que passe longe de ser um produto palatável para o grande público. Não segue nenhuma receita segura de um blockbuster, é um trabalho para as sombras mesmo.
O roteiro procura ir além de uma mera história detetivesca de pessoas desaparecidas e crimes misteriosos. Tenta responder perguntas que já passaram pelas mentes de fãs em determinado ponto da vida, na época em que teorias da conspiração pareciam ser um assunto interessante e plausível. Há na verdade um segredo por trás de tudo que aparentemente é criatividade espontânea? Estamos mesmo sendo manipulados pela cultura pop, usada como um instrumento de dominação? E aonde as perguntas certas podem nos levar? A resposta, talvez a coisa mais realística ou normal de todo o filme, vem pela boca do próprio Sam em determinado momento.
Under The Silver Lake tem todos os elementos para se tornar um clássico cult. Ao invés de Andrew Garfield, o protagonista poderia ter sido interpretado por atores como Jesse Eisenberg, Elijah Wood ou ainda o falecido Anton Yelchin, porém, Garfield forneceu ao personagem um ar de maldade interior que o roteiro pedia, que o gênero noir pede. O Sam pode parecer um nerd, mas na verdade está mais para um psicopata, um stalker capaz de rompantes de violência praticados com a naturalidade de quem aprecia o que está fazendo, ainda que não seja empenhado de forma gratuita.
O turbilhão de mensagens, homenagens, citações e pirações de Under The Silver Lake partiu da mente do diretor e roteirista David Robert Mitchell, responsável pelo também acima da média Corrente do Mal (It Follows, 2014). O conjunto da obra concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes e ao prêmio de melhor longa independente pela A24 no Golden Trailer Awards, uma premiação que celebra trailers de filmes e campanhas de marketing.
Para encerrar, créditos animados acompanhados de Strange Currencies do REM, o tipo de recurso que prende o espectador na tela até o último segundo do filme. Under The Silver Lake é uma obra que deve figurar nas listas de melhores filmes do ano de 2018, ao menos nas listas que importam.
Under The Silver Lake (2018)
Diretor: David Robert Mitchell
Gênero: Suspense; Drama; Terror
Elenco: Andrew Garfield, Riley Keough, Topher Grace
Duração: 2h19min