Não são filmes perfeitos, mas possuem algum fator que os tornam diferenciados, ainda que, em determinado momento, descambem para a apelação gratuita, como se os roteiristas estivessem cansados, o diretor achasse que já trabalhou demais e o produtor intervisse para tornar a coisa mais comercial e garantir uns milhões a mais.
No geral, diante de um cinema comercial tão pausterizado quanto o da última década, alguns títulos ainda surpreendem a audiência com ideias e abordagens um tanto fora da curva em relação ao que nos acostumamos, afinal essa arte não é nenhuma jovem adulta de 25 anos.
Se são ‘filmes para adultos’ e adulto não vai mais ao cinema, não é possível cravar, mas o critério ‘não ser exibido em um cinema perto de você’ parece ser um dos mais determinantes para entrar nessa classificação que nem existe mas a cada ano é mais comentada por…adultos.
Dos seis filmes da lista, 3 foram direto para streaming aqui no país. Os demais, dois foram tão bem-sucedidos que conseguiram chegar aos cinemas do interior, mas apenas um deles ficou em cartaz por mais de uma semana.
Todos os títulos abaixo são uma boa pedida para reunir a turma para uma sessão caseira de filmes. Exploram um pouco a maldade humana, a loucura e a capacidade de se meter em encrencas cabulosas.
Noites Brutais (Barbarian, 2022): Mulher aluga uma casa pelo AirBnb mas, quando chega à residência, descobre que já tem um inquilino lá. Falha da plataforma ou uma arapuca previamente planejada?
Em sua primeira parte, joga uma situação de conflito que deixa no ar a expectativa da ameaça, que vai se prolongando indefinidamente. Quem é o gato e quem é o rato da história?
A confusão mental da garota, Tess (Georgina Campbell), se torna também a do espectador. Ela deve aceitar dividir a casa com um estranho, Keith (Bill Sakarsgard), ou deve sair do local? Ele é mesmo um cara legal ou apenas um psicopata aguardando sua presa baixar a guarda? É o total medo do desconhecido em área desconhecida, e o filme é bem feliz em criar essa situação, trabalhando sem pressa, fazendo com que os níveis de ansiedade, paranoia e curiosidade oscilem em harmonia.
Noites Brutais é fatiado de modo que parece até uma compilação de histórias que têm em comum o mesmo ambiente, uma casa que, reparando bem, é sinistra e está localizada em um bairro sinistro. Há conexões claras entre as tramas, mas ao menos uma das partes parece completamente descolada da história principal.
Depois de algum tempo apresenta um novo protagonista, o ator AJ (Justin Long), que possui um background que também põe em dúvida suas intenções e integridade.
Noites Brutais joga com o público e o mantém suspeitando de tudo, construindo o clima ideal para um thriller. Pena que, em sua reta final, se torna apenas mais um slasher apelativo, descambando para o exagero, corre corre e inverossimilhança tão comum ao subgênero do terror, incluindo aquelas atitudes idiotas que já levaram tantos personagens à morte.
O Telefone Preto (The Black Phone, 2021): A trama sobre um sequestrador de crianças se passa entre o final dos anos 70 e início dos 80. Esse revival apelativo da era mágica já não esgotou? Eu acreditava que sim, mas O Telefone Preto me mostrou que clichês, modas e artifícios manjados podem funcionar sempre.
O protagonista é um garoto que vive com o pai e a irmãzinha menor. Pobreza e violência os cercam. O pai alcoólatra bate nos filhos. A escola também não é um ambiente seguro, o bullying corre solto. Nas ruas, crianças desaparecem.
O psicopata vivido por Ethan Hawke, com suas máscaras demoníacas que se dividem, consegue ser um dos mais assustadores do cinema. Nunca subestime o poder de uma máscara. O filme não se furta a sugerir os piores tipos de violência e menos ainda em apresentar cenas gráficas de brigas entre crianças e de adulto surrando filhos.
O sobrenatural se manifesta na irmã mediúnica e nos fantasmas das crianças mortas pelo psicopata, que se comunicam com a próxima vítima através do tal telefone preto do título, que fica no cativeiro.
Cada fantasma fornece uma informação sobre o assassino e dá uma dica de como o garoto pode se salvar. É angustiante, provoca ansiedade e estimula a imaginação e o senso de vingança. É despretensioso, mas é filmaço.
Fresh (2022): O difícil de comentar sobre filmes que surpreendem o espectador é revelar apenas o suficiente para despertar a curiosidade dos leitores sem, no entanto, estragar totalmente a experiência.
O mal mais comum de um thriller ou terror é não desenvolver bem os personagens fazendo como que ninguém se importe que eles sejam mortos. Construir um clima de suspense, apreensão e apresentar um protagonista carismático exige tempo. Há o medo de que isso afugente a audiência que, no cinema, é formada predominantemente por jovens viciados em reels, stories, shorts e tiktoks, mas se a narrativa for bem elaborada, o elenco e os diálogos ajudarem, nem esse tipo de novo silvícola vai se sentir entediado esperando a ação.
Os autores de Dylan Dog costumam explorar em suas histórias o medo da vida real, pinçando elementos comuns do nosso cotidiano e transformando em terror. Esse método é empregado em Fresh, ao explorar o medo do ‘date’ moderno.
Os aplicativos de encontros basicamente já foram incorporados ao nosso dia a dia. Ninguém mais acha bizarro ou vergonhoso conhecer o futuro cônjuge por meio do Tinder, mas toda mulher, especialmente, tem medo de dar match com um psicopata.
Esse é um dos trunfos de Fresh. Poderia ser apenas um filme de comédia romântica protagonizada pela Daisy Edgar-Jones, mas evolui para uma experiência infernal. Pena que, assim como em Noites Brutais, desanda para a facilidade de um terror comum com aqueles clichês do tipo dar as costas para o vilão enquanto ele está indefeso, dando tempo para ele se recuperar e voltar a atacar, mesmo que fosse impossível na vida real um ser humano suportar tanta pancada.
O Menu (The Menu, 2022): Um filme que não possui efeitos especiais ou feitos super-humanos parece que não consegue mais se tornar um fenômeno extraordinário de bilheteria (Terrifier 2 tem um palhaço imortal), apesar de se encaixar em um nicho que nunca teve exatamente problemas de caixa, até porque costumam ser bem baratos para produzir. Estou falando que O Menu é basicamente um filme de terror.
Casal formado por Nicholas Holt e Anya Taylor-joy consegue cobiçadas entradas para um restaurante que fica isolado em uma ilha. O barato é a exclusividade para provar os pratos de um chef cinco estrelas, Slowik (Ralph Fiennes). Só que o sujeito parece que decidiu pirar bem naquele dia e o evento se torna uma espécie de vingança, um embate entre riquinhos escrotos contra serviçais revoltados. É chegado o momento da guilhotina.
Não importa que as motivações do chef e de sua equipe pareçam loucura. Apenas aceite, como os clientes do restaurante, que nada daquilo que eles estão vivenciado faz sentido. Estamos vivendo em uma moderna sociedade enlouquecedora, na qual muita nosso cotidiano não faz muito sentido mesmo. Imagina que o protagonista de Dia de Fúria, em vez de vendedor de seguros, fosse cozinheiro.
O casal protagonista não é bem protagonista e nem casal. Há um intertexto de conflito de classes que não se torna pedante nem professoral ou muito menos militante. Tudo é usado e costurado servindo à trama e a trama serve para se divertir. Situações acontecem e é interessante ver como a protagonista se sai delas. O final é deliciosamente irônico.
A Queda (Fall, 2022): Não racionalize muito e vai se divertir bastante, mas também não precisa desligar o cérebro. Fico me perguntando como que as pessoas se jogam em situações perigosas gratuitamente, ou eu talvez seja covarde demais para arriscar perder uma perna, um braço ou os dois apenas por um pico de adrenalina barata. Transar é muito mais seguro, confortável e relaxante (quando o sexo é seguro, claro).
Beckie (Grace Caroline Currey) entra em depressão após a morte do marido quando, junto a uma amiga, escalavam um paredão. Entregue ao álcool e em conflito com o pai, ela sai da inércia quando a companheira de aventuras, Hunter (Virginia Gardner), reaparece e a convence a escalar uma torre no meio do nada. As duas terminam presas no topo, sem água, sem sinal de celular, sem ninguém ao redor para pedir ajuda.
Medo de altura é um dos mais comuns. Eu mesmo tenho, o que só tornou o filme uma experiência ainda mais angustiante.
Esqueça que urubus não atacam pessoas ainda vivas ou que, se inserir um objeto de metal dentro de um bocal, fecha um curto circuito. Curar um trauma causado por uma atividade radical fazendo outra atividade radical? Terapia de choque que chama.
Esses e alguns outros são detalhes pequenos que não diminuem a inventividade do filme ao criar várias situações-problema e soluções propostas pelas protagonistas, sempre com risco máximo. Gosto como a música contribui para enfatizar os climas de esperança e desesperança a cada nova tentativa e fracasso. Gosto como tenta enganar o espectador em um cenário minimalista.
Nunca duvide do lapso de bom senso das pessoas. Abra um site jornalístico ou acesse o Darwin Awards e encare a realidade: tem muita gente morrendo das formas mais toscas e evitáveis todos os dias.
Morte, Morte, Morte (Bodies Bodies Bodies, 2022): Um grupo de jovens se reúne em local isolado para fazer sexo, beber e se drogar, mas alguém é assassinado. Quem é o matador(a)? Essa ideia parece que foi bem pouco explorada pelo cinema, não é mesmo?
O fato é que as situações criadas aqui funcionam. Tudo bem que todos os personagens são chatos pra valer e há momentos em que a verborragia de contra acusações e traições atingem picos que fazem quase desistir do filme mas aguente um pouco mais, nem que precise recorrer a uma espiada nas notificações do celular, porque sempre surge algo que faz valer a estada e são apenas 90 minutos.
Os personagens são uns jovens cretinos filhos de milionários também cretinos, cujas exceções talvez sejam o estranho que parece ter um background militar, Greg (lee Pace), e a Bee (Maria Bakalova), uma pobretona que não se encaixa naquele ambiente mas que a namorada insistiu em levar junto jurando que todo mundo é legal (o que nunca é verdade). Me ocorre agora que o conflito entre os dois personagens que não são milionários ou herdeiros é o mais selvagem de todos.