O Rastreador – Marcas da bárbara colonização australiana

O pôster vende o filme como “uma impactante obra de poesia visual”. Não se trata de mera propaganda, mas de uma observação contundente acerca da qualidade da obra. O Rastreador é um filme complementado por pintura e música, literatura e fotografia, formando uma verdadeira obra prima da sétima arte, um registro realístico de uma realidade histórica vergonhosa que, com alguma sorte, servirá de alerta às novas gerações.

O Rastreador possui os mesmos moldes históricos do filme Doce País (Sweet Country, 2017), o passado vergonhoso da colonização do continente australiano. São filmes gêmeos separados por 15 anos de produção, mas ambientados na mesma faixa temporal, nas primeiras décadas do século XX, um tempo ainda selvagem e impiedoso, talvez pouco ou nada melhor que o medievo ou, a depender do ponto de referência, ainda igual ao nosso tempo.

Em 1922, três homens, com a ajuda de um aborígene, o rastreador do título, cruzam territórios inóspitos do continente, incluindo o Outback, perseguindo um nativo acusado de ter estuprado e assassinado uma mulher branca. A comitiva é formada pelo Fanático (Gary Sweet), pelo Veterano (Grant Page) e pelo Discípulo (Damon Gameau). O filme não fornece nomes, apenas essas alcunhas que os definem. O Fanático é um senhor religioso, um homem que está mais inclinado para as lições de perdão e fraternidade do Novo Testamento que para as ordens de vingança e sacrifício do Deus do Antigo Testamento. É um homem de fato disposto a se sacrificar pelo próximo. O Veterano é um calejado oficial do exército, um homem duro e impiedoso que trata os aborígenes como formigas, exterminando impiedosamente qualquer um que simplesmente cruze seu caminho. O Discípulo é um jovem soldado, uma alma ainda não preenchida pela maldade daquele mundo, uma mente que se mostra aberta para a compreensão e que demonstra ter consciência dos limites de suas ações. Claro que o trio entrará em conflito em sua missão, conflito que será aproveitado pelo Rastreador, interpretado por David Gulpilil, em seu próprio benefício.

Durante a jornada acompanhamos as dificuldades geográficas do continente mortal, assim como o conflituoso relacionamento que se desenvolve entre os quatro personagens. O Rastreador é tratado pior que um cão, sendo açoitado e posto a ferros pelo Veterano, ainda que sob protestos ineficientes do Fanático. A ironia é que o aborígene é o único dentre eles capaz de reconhecer as trilhas e indícios de passagens do alvo. Basicamente, sem ele, o trio se perderia e morreria em ambiente tão hostil. Mesmo analfabeto e considerado selvagem, o conhecimento que ele possui sobre o território, as tribos, os animais e as plantas da região, e até como vai ser comprovado, sobre o caráter e o comportamento dos homens de todas as cores, o tornam o ser mais sábio entre eles.

Fica claro ao longo da narrativa que, na verdade, temos um Rei aprisionado por escravos, e não o contrário como faz parecer pelas correntes, fato que fica mais perceptível na medida em que a relação entre o Rastreador e o Discípulo se desenvolve. Quando finalmente a sofrida comitiva encontra o fugitivo, o que acontece contribui ainda mais para conhecer os hábitos e a cultura aborígene.

Apesar de o filme ser naturalmente violento em vários aspectos, o diretor optou por evitar apelar por apresentar essa violência de forma gráfica. A solução veio na forma das pinturas de Peter Coad, que tomam a tela durante as cenas em que a dupla de soldados extermina impiedosamente os nativos que encontra. Ao invés das imagens realísticas de velhos, mulheres e crianças sendo mortas, surge uma pintura do artista retratando o momento. Esse recurso não diminui em nada a indignação do espectador ante aos acontecimentos.

As baladas que acompanham o filme, obras do músico aborígene Archie Roach, são canções puxadas para o blues que tocam fundo na alma, hinos que expressam angústia, desesperança e sofrimento dos aborígenes em uma terra que fora invadida por forças estrangeiras comandadas por diabos brancos que julgaram seus habitantes como seres inferiores e os puseram à ferro, promovendo escravidão, tortura e genocídio.  

O diretor e roteirista holandês Rolf de Heer voltaria a retratar os aborígenes no cinema com obras como o documentário The Balanda and the Bark Canoes (2006) e os filmes Ten Canoes (2006) e O País de Charlie (Charlie’s Country, 2013).

O Rastreador (The Tracker, 2002)
Gênero: Drama
Nacionalidade: Austrália
Diretor: Rolf de Heer
Elenco: David Gulpilil, Gary Sweet, Damon Gameau
Duração: 1h30min