Corrupção, moralidade, lei e justiça são temas que se destacam na filmografia de Sidney Lumet, ao menos nos títulos mais lembrados do diretor. Em O Príncipe da Cidade (Prince of the City, 1981) somos apresentados a uma história baseada em fatos reais onde um policial resolve enfrentar uma espécie de processo de purificação após ter solidificado sua vida sob um alicerce de corrupção que se enraíza nas instituições do Estado, algo que se tornou tão aceitável dentro da categoria quanto um costume cultural.
São servidores que não se enxergam como corruptos, mas como peças essenciais para a manutenção do sistema, uma espécie de mantenedores do equilíbrio de forças. Nesse aspecto, podem ser enxergados como uma sociedade quase secreta, um clube exclusivo que mistura as regras das ruas com os estatutos legais, uma máfia dentro do sistema. Assim como a máfia de O Poderoso Chefão, formam uma espécie de família na qual a traição é o pior dos delitos.
Na polícia de Nova York, o detetive Daniel Ciello (Treat Williams) é respeitado por seus pares. Possui uma rede de informantes no submundo e faz parte de um sistema de captação de propinas que contribui para manter uma certa ordem na cidade. Descendente de italianos, salta à vista dos mais íntimos, inclusive da sua própria família, que seus rendimentos na polícia não poderiam manter seu estilo de vida. O que não parecia afetar sua consciência, começa a despertar após uma discussão com o irmão toxicômano e uma crise com um informante.
Seu momento de vulnerabilidade o faz ser seduzido pela oferta de Rick Cappalino (Norman Parker), um assistente da promotoria encarregado de investigar denúncias de corrupção na polícia. Daniel se torna um informante da promotoria, achando que pode limpar seu passado e controlar quem será denunciado, protegendo seu círculo de amigos mais íntimos, mesmo com os protestos desesperados de sua esposa.
O problema é que, na medida em que as investigações progridem, o caso começa a tomar proporções que levam à entrada de novos promotores, pessoas que enxergam o detetive Ciello como apenas mais um criminoso. Enquanto isso, o conflito com sua família cresce e ele começa a ser visto com desconfiança pelos seus colegas, o que o coloca em situações perigosamente mortais.
Lumet trabalhou a história em um filme longo, beirando quase 3 horas de duração, mas usou o tempo para trabalhar o personagem, sua descida ao inferno, ou ascensão para o céu, a depender do ponto de vista do espectador. A sequência em que o detetive socorre um informante em crise de abstinência é desesperadora, crua em vários aspectos, mostrando ao mesmo tempo o quão sujo pode se aquele trabalho, um viés que a sociedade não enxerga e nem aceitaria. O lar do casal de viciados é uma visita ao coração da decadência humana. Apesar de corrupto de acordo com a mesma lei que jurou defender, Ciello é mostrado então como um homem capaz de atos de compaixão, mesmo por aqueles que são considerados a escória da sociedade.
Ao trocar a rede de proteção dos colegas da polícia e do submundo pela rede do Estado, limpa e translúcida, Daniel logo se descobre desamparado, pois percebe que se jogou nas mãos de tipos de tecnocratas que tendem a enxergar tudo como legal ou ilegal, gente com ambições políticas que, não tendo nenhum laço com as testemunhas, as usa para atingir posições maiores.
A crise de consciência de um homem começou uma reação em cadeia que afetou a vida de dezenas de outras pessoas, inclusive a própria. O protagonista perde sua identidade. Para os antigos colegas de polícia, é um traidor. Para a esposa, um idiota irresponsável e inconsequente. Para os promotores, apenas mais um tira sujo.
Talvez o “erro” de Lumet tenha sido o de escolher um ator desconhecido para o papel de protagonista. O caso é que Al Pacino declinou do convite por achar o personagem muito parecido com o que interpretou em Serpico, também do Lumet. Treat Williams imprime pouco ou nenhum carisma ao personagem. Sua expressão contínua de angústia não consegue soar verdadeira e em uma história tão centrada em um personagem, não conquista a empatia do espectador. Ainda assim, a história fala mais alto. O econômico diretor entrega um deleite visual, com tomadas e passeios de câmera por cenários e desenvolve situações de tensão que fazem a audiência reter a respiração nos momentos certos.
O Príncipe da Cidade (Prince of the City, 1981)
Direção: Sidney Lumet
Elenco: Treat Williams; Jerry Orbach; Richard Foronjy
Gênero: policial; drama
Duração: 2h 47min