Uma das maiores surpresas oriundas do cinema oriental dos últimos anos não diria que tenha sido Parasita, Operação Invasão ou O Tigre e o Dragão, mas uma inusitada produção independente rodada em Hong Kong que recebeu um título que soa bem estranho: Love in a Puff. Em uma tradução livre seria algo como amor em uma tragada.
O longa do diretor Ho-Cheung Pang lembra as produções independentes estadunidenses da década de 1990 fomentadas pelo Festival de Sundance, capitaneado por Robert Redford, e a Miramax, levada a punhos de ferro pelos irmãos Weinstein. Pelo tema que aborda, e o modo como o faz, evoca também lembranças de Sexo, Mentiras e Videotape (Sex, Lies and Videotape, 1989) do Steven Soderbergh, além da trilogia de Richard Linklater iniciada em Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995).
Na Hong Kong de 2007, o governo decide proibir o fumo em locais fechados, mesmo ambientes preparados para o hábito, como zonas específica para fumantes. Dessa forma, os viciados em tabaco se veem forçados a saírem do ambiente de trabalho para dar uns tragos. Com essa dinâmica, se formam “hot pot packs” em becos, escadarias, e outros pontos discretos, onde trabalhadores correm para fumar, espairecer, fofocar e até paquerar nos intervalos.
A primeira cena de Love in a Puff faz o espectador acreditar que, ou colocou o filme errado ou então houve um erro no uploud ou no catálogo do sistema de streaming. Mas, esclarecida a confusão, confirmamos que é o filme correto sim. Uma mirabolância simples, mas genial do diretor, criando um artifício que já insere o espectador, sem que ele perceba, dentro da história.
Os “hot pots” terminam proporcionando que, pessoas que de outra forma jamais se encontrariam, façam amizade. Trabalhadores de áreas diferentes, gente de várias regiões da cidade em encontros diários onde rola todo tipo de informação e bate papo. Claro que, em ocasiões assim, surge naturalmente um estímulo para a formação de casais. Os encontros para fumar são também oportunidades de paquera. É assim que Jimmy (Shawn Yuee) e Cherie (Miriam Chin Wah Yeung) se encontram e quase que imediatamente simpatizam um com o outro. Ironicamente, a garota sofre de asma, mas não consegue largar o vício.
A narrativa é apresentada de forma linear, mostrando os acontecimentos dia a dia, em uma rápida evolução no relacionamento entre o casal. Nesse pouco tempo, surgem enganos e desenganos, conflitos e dúvidas. O amor é mostrado como um jogo acelerado de pressões alternadas, de avanços e recuos, que irrita quem observa e angustia quem participa, provocando encontros e desencontros, enganos e desenganos. Quando um acha que está começando algo, uma atitude ou descoberta do outro pode pôr tudo a perder. Apesar de ser um romance, não espere cenas quentes, mas uma série de diálogos e situações que não envolvem sexo, mas revelam um pouco a face da rotina e do comportamento dos jovens adultos chineses.
O casal soa extremamente comum. Ele, trabalhando numa empresa de marketing, ela vendedora de cosméticos. O filme não aborda o amor de forma exatamente romântica, mas realística, como um jogo de momentos e oportunidades. Jimmy em seu relacionamento anterior foi trocado por outro, mais bem sucedido, enquanto Cherie pensa em fazer exatamente a mesma coisa, trocar o atual namorado por Jimmy.
Love in a Puff é essencialmente um retrato urbano moderno. As pessoas trabalham e tentam passar um pouco de tempo entre um expediente e outro frequentando bares, boates, eventos sociais como aniversários ou simplesmente caminhando pela cidade à noite. O aspecto tecnológico datado também confere um ar saudosista para aqueles que já tiveram de paquerar por meio de sms (até hoje ainda tenho na memória de um antigo celular troca de mensagens). A garota menciona a intenção de mudar de operadora para gastar menos com as mensagens que troca com a nova paixão, uma situação que muita gente passou na época.
O diretor abre espaço para transformar o filme em um recorte social com tons de documentário, apresentando gravações com falas de personagens coadjuvantes emitindo algumas impressões ou opiniões sobre relacionamentos. Seu estilo espontâneo lembra um pouco o da nouvelle vague francesa. A atuação do elenco é mais realística que o normal, sem a característica canastrice dos orientais, ou ao menos essa canastrice está bem mais controlada. Não foi nem o alto número de palavrões (A boca suja dos chineses aqui chega a impressionar até os brasileiros) que alçou a produção para uma censura equivalente a 18 anos, mas o presença de cigarro. As brincadeiras e curtições que os personagens tiram uns com os outros também beira o humor negro em alguns momentos.
O filme pode até funcionar como um estímulo para o fumo, mas essa não é a intenção. O cineasta apenas encontrou uma ótima maneira para ancorar uma história banal de cara encontra garota nos hábitos e regras de um povo. Em alguns casos, o vício no cigarro começa como uma forma de variar o dia, de ter o que fazer para preencher alguns momentos, mas também abre oportunidade para ampliar o network nos hot pots.
O sucesso razoável da produção, inicialmente mais de crítica que de público, suscitou uma continuação que foi além, Love in the Buff (Chun Kiu yi Chi Ming, 2012). Formando a trilogia, em 2017 veio Love off the Cuff (Chun Kiu gau Chi Ming, 2017).
Cenas Memoráveis
01. Hot Pot Packs. Em um grupo de fumantes, Cherie escuta a história de uma garota que traiu o namorado com um francês. Logo em seguida, Jimmy, o sujeito que levou o fora, chega ao grupo, que muda de assunto.
02. Encontro virtual. Uma amiga de Cherie marca encontro com um rapaz que conheceu pela internet, mas aparentemente ele não gostou da aparência da moça e a deixa esperando em uma padaria. Jimmy tenta resolver a situação e a cena enseja uma discussão sobre enganar as pessoas com fotos, revelando mais o humor ácido do longa.
03. Crise no motel. O casal resolve passar a noite em um motel, mas Cherie tem uma crise de asma. Mesmo acarretando danos à saúde, as pessoas não conseguem largar o vício.
04. Viciados. O governo anuncia um aumento no imposto de cigarros, e o casal que estava separado após alguns desentendimentos, se encontra em uma loja de conveniência para comprar todo o estoque antes do aumento de preço. O vício em cigarros foi o meio de encontro e mais uma vez promove a chance de uma reconciliação.
Love In A Puff (Chi Ming yi Chun Kiu, 2010)
Direção: Ho-Cheung Pang
Elenco: Miriam Chin Wah Yeung; Shawn Yue; Singh Hartihan Bitto;
Gênero: comédia; romance;
Duração: 1h44min