Ao seu modo, em uma era sem internet para todos e muito menos redes sociais, Kids foi um filme que viralizou. Não apenas sua temática, mas o modo como foi construído e sua apelação para os limites envolvendo nudez e sexo entre adolescentes escandalizou os puritanos, desafiou a Disney, revelou talentos, registrou e marcou uma geração e ainda entrou na lista de grandes títulos do cinema independente americano da década de 1990.
Foi fruto de uma estranha reunião de um diretor que nunca havia dirigido nada antes, um roteirista vendo seu primeiro longa nascer e atores que nunca tinham tido qualquer experiência com cinema. Talvez tenha sido esse conjunto que fez o filme soar tão vida real. O que eles falavam na tela era o que realmente conversavam com amigos.
A câmera é intimista, acompanha o rolé como se fosse parte do grupo, evitando a apelação esquizofrênica do found footage. Para conseguir tamanha intensidade dramática e obter o efeito narrativo desejado, o fotógrafo Larry Clark, então com 52 anos, dedicou um tempo para se enturmar com o tipo de garotos que ele queria retratar nas telas. Até aprendeu a andar de skate, conquistando a confiança e tranquilidade da turma. As filmagens duraram 39 dias. Conseguir financiamento não foi fácil, mas o problema mesmo foi como levar o filme para o mundo.
Como sempre acontece quando um sujeito quer ir contra a corrente da tendência comercial do mercado cinematográfico, abordando um tema ousado que resultaria em uma classificação alta demais para ser um projeto lucrativo, muitas portas se fecharam para o aspirante a cineasta. Até então havia uma empresa que poderia comprar essa briga, a Miramax, comandada a punhos de ferro pelos irmãos Weinstein, Bob e Harvey (aquele que ficou mundialmente conhecido por casos de assédio e estupro por parte de dezenas de atrizes com as quais trabalhou). Mas, para o azar de Clark, a Miramax fora adquirida pela Disney, que barraria qualquer produção que unisse as palavras sexo, adolescentes e AIDS.
Acontece que, em 1994, a Miramax havia adquirido os direitos de distribuição de O Padre (Priest, 1994), um filme sobre um padre que sofre perseguição da Igreja Católica por ser homossexual. Claro que isso incomodou a Igreja, que era retratada no longa como uma instituição hipócrita e de mente fechada. A instituição, na forma do presidente da Liga Católica, William A. Donohue, iniciou uma campanha para tentar fazer com que a Disney impedisse o negócio. Logo, ligações, faxes e até cartas contendo ameaças de mortes inundavam os serviços das duas empresas. Acontece que, para Harvey, quanto mais polêmica, mais publicidade grátis para o filme. Porém, estando agora sob as asas da Disney, o fanfarrão resolveu baixar a bola um pouco e adiou o lançamento do filme para uma data menos importante que a planejada, baixando assim a visibilidade do longa.
E então, com todos os executivos ao redor ainda meio cismados, veio Kids e os olhos de Harvey brilharam. Era o tipo de produção que o fascinava e ele faria de tudo para conseguir distribuí-lo. Mesmo em Cannes, devido à controvérsia da película, Harvey teve de ameaçar retirar todo o catálogo da Miramax do Festival para que ele fosse aceito como concorrente do prêmio principal. O filme fez sucesso, mas um crítico da Variety, Todd McMarthy, não gostou tanto do que viu. Escreveu que era apelativo, mencionando até as palavras “pornô infantil” em seu texto. Ferrou! A esposa do senador Bob Dole se referiu a Kids como um “pesadelo de depravação” sem nem mesmo assisti-lo.
Harvey Weinstein então bolou uma solução genial. Ele criou às escondidas uma empresa apenas para distribuir o filme, a Shining Excalibus Films. O trabalho foi feito pelo pessoal da Miramax, mas sem provas, a Disney nada pôde fazer. A estratégia, uma fraude clara aos olhos da indústria, especialmente da própria Disney, enfureceu seus inimigos e novos amigos, pois mostrava um caminho que poderia ser percorrido por qualquer um que quisesse passar a perna em um grande estúdio ou distribuidor.
O filme recebeu classificação NC-17, o que significaria estar fora da grande rede de salas de cinema, tipo 400 salas ao invés de 8 mil. O jeito foi lançar sem classificação indicativa. Para um filme que custou 1,5 milhão, o retorno de 7 milhões na bilheteria doméstica foi um excelente negócio, ainda que aquém do cacife de Harvey no momento. Larry Clark reclamou publicamente que só recebeu meros 40 mil dólares, resultado de uma mistura de amadorismo, advogados espertos e empresários assassinos. Mesmo assim se disse grato e ficou satisfeito por ter conseguido fazer seu primeiro filme, um sucesso de crítica. Até tentou vender outros projetos ousados a Harvey posteriormente, mas só levou portas na cara.
Kids é um retrato realístico de uma geração de adolescentes novaiorquines nova iorquinos do início da década de 1990. Não que todos os adolescentes de Nova York daquela época e lugar passassem os dias fazendo sexo precoce sem proteção, bebendo, praticando pequenos furtos e se drogando em festinhas na casa de amigos. Mas é fato que todo adolescente de todas as épocas passa quase a totalidade de suas horas acordado conversando sobre ou pensando em sexo e, durante o sono, sonhando com sexo.
O problema é que, bem nessa época retratada pelo filme, a AIDS era um espectro assassino que ainda se espalhava em relativo silêncio por uma sociedade preconceituosa, reticente e desinformada. Freddie Mercury havia falecido em 1991 por complicações decorridas da doença. Junte isso ao natural despojamento inconsequente do jovem, e temos uma fórmula desastrosa. Telly (Leo Fitzpatrick) tem uma estratégia perfeita pra evitar qualquer DST sem precisar usar preservativo: transar apenas com virgens! E é assim que KIDS começa, mostrando ele aos beijos com uma adolescente em planos longos com direito a superclose daqueles que provoca constrangimento. Após juras de amor eterno e confiança, mais uma garota perde a virgindade em Nova York. Telly já sai do quarto da jovem mostrando desrespeito à família da garota, cuspindo na mesa de jantar. Encontra o amigo Casper (Justin Pierce), que o esperava na calçada e a dupla segue para uma longa jornada pelas ruas da cidade.
Dois vagabundos errantes, Telly e Casper roubam uma garrafa de refrigerante de um mercadinho e, depois de uma parada no apartamento de um colega, seguem para um parque para comprar maconha. Lá, se envolvem em uma briga violenta e então Telly parte para sua próxima vítima, outra adolescente virgem das proximidades. Por outro lado, temos um grupo de garotas conversando livremente sobre suas experiências sexuais. Dentre elas, Ruby (Rosario Dawson) e Jennie (Chloe Sevigny). Ruby, com uma vida sexual mais intensa, resolve realizar alguns testes médicos para saber se está limpa, pedindo a companhia da amiga no processo. Quando saem os resultados, a garota que só havia tido relação sexual uma vez na vida, descobre que é soro positiva. Frente ao choque da descoberta, Jennie cruza a cidade para encontrar Telly, aquele que a transmitiu a doença.
Linguagem chula, imagens fortes e acontecimentos chocantes permeiam o longa. As cenas de sexo, se não explícitas, são bastante definidas. As garotas, basicamente crianças nos primeiros estágios da puberdade. No cinema verdade de Clark, o espectador aprende em detalhes como fechar um baseado ou técnicas de como roubar um mercadinho de bairro. Os resultados dos excessos também são apresentados, seja a ressaca após abuso de álcool e drogas ou uma briga violenta no parque onde não basta arrebentar completamente o adversário, tem de humilhar o sujeito. O que se evita mostrar, é falado explicitamente, com total desenvoltura do elenco, jovens na maioria em seu primeiro trabalho nas telas. Era a estreia de gente que se tornaria famosa como a Rosario Dawson, ou que teria um currículo bem extenso ainda que não marcante o suficiente para o mainstream, como a competente Chloë Sevigny (vista em filmes como O Fim da Era Discoteca, Psicopata Americano, Dogville, Zodíaco e A Rota Selvagem).
Para se acostumarem com as câmeras, o primeiro dia de gravação deveria ter sido Telly e Casper andando pelas ruas. O problema é que, justo nesse dia, começou a chover. Para não perder tempo, a sequência foi alterada e então a primeira atuação da vida de Fitzpatrick foi justamente a cena que abre o filme, onde seu personagem está na cama com uma garota seminua, em beijos longos e extremamente molhados.
Kids teve um resultado artístico tão bom que o diretor tentou usar os mesmos truques em Kids e os Profissionais (Another Day in Paradise, 1998) e Bully – Juventude Violenta (Bully, 2001) e novamente não se saiu mal, mas sua estreia ainda continua seu trabalho mais lembrado.
KIDS (Kids, 1995)
Diretor: Larry Clark
Gênero: Drama
Duração: 1h31min
Elenco: Leo Fitzpatrick; Justin Pierce; Chloë Sevigny; Rosario Dawson