Jojo Rabbit – Sátira com criança nazista como protagonista manda recado a adultos ingênuos do presente

Os filmes do diretor Taika Waititi tradicionalmente possuem elementos e personagens no mínimo esquisitos. Já tivemos um mockumentary apresentando a conflituosa vida de vampiros que dividem um mesmo teto no nosso mundo contemporâneo (O Que Fazemos nas Sombras, de 2014) e um romance dramático esquisito sobre um relacionamento entre dois adultos problemáticos que usam fantasias bizarras (Loucos Por Nada, de 2007). Mas parece que a especialidade do diretor é retratar crianças como protagonistas em contos que retratam a colisão entre o imaginário universo infantil com o realista e muitas vezes cruel mundo adulto.  Assim foi com Boy e A Incrível Aventura de Rick Baker, e assim aconteceu novamente em Jojo Rabbit, talvez o mais ousado título de sua carreira até então.

Fazer um filme sobre uma criança alemã que tem como amigo imaginário o próprio Hitler durante o ápice final de Segunda Guerra Mundial poderia ser um desastre completo, correndo riscos de ser mal interpretado ou simplesmente de sair um produto de mau gosto gerando ainda mais polêmica em uma realidade onde sentimentos nazifascistas parecem querer ver a luz do sol novamente. Afinal, muito disso de fato ocorreu. A produção suscitou algumas críticas negativas, polêmicas e interpretações enviesadas mas, felizmente, estas ficaram em segundo plano e o projeto ganhou 6 indicações ao Oscar, incluindo melhor filme.

Claro que a criatividade de Waititi já se provou ser incomum, mas a origem de uma história tão inusitada veio de um livro recomendado por sua mãe, ela própria uma judia. Caging Skies, de Christine Leunen, conta a história de um garoto de Vienna que, durante a Segunda Guerra Mundial, descobre que sua família é, na verdade, antinazista. O diretor comprou o desafio de vender esse filme, começou a escrever o roteiro em 2011, inserindo suas próprias adaptações (incluindo o Hitler amigo imaginário do protagonista), fez três outros filmes, e foi então levou o projeto de Jojo à Fox, que só aceitou com a condição que o próprio Taika fizesse o papel de Hitler o que, na falta de sentido, fazia todo sentido.

Em Jojo Rabbit, conhecemos Jojo Betzler (Roman Griffin Davis), um garoto de 10 anos que adora o nazismo ao ponto de ter um amigo imaginário que é o próprio líder do Reich alemão, Adolf Hitler. Seu pai supostamente está lutando pelo Eixo em algum lugar da Itália e ele, como forma de ajudar seu país, se integra a uma espécie de acampamento para jovens nazistas, onde irá aprender todas as técnicas para queimar livros, identificar e matar judeus. Ao sofrer um acidente durante os treinos, o garoto é rebaixado a ajudar na campanha de guerra de outras formas, como distribuir panfletos de propaganda nazista nas ruas ou recolher metais para fabricação de munições. Ao passar mais tempo em casa, Jojo começa a descobrir que sua mãe talvez não seja a mulher fiel ao Reich que ele achava e então a descobrir mais sobre os judeus que tanto foi ensinado a temer.

Fazer rir é um trabalho complicado. Fazer rir com os temas do nazismo e holocausto parece ser um desafio insano. Mas quando a tarefa parece insana, só os insanos podem fazer bem a tarefa. Waititi consegue transitar perfeitamente entre a comédia e o drama, apresentando o contraste entre uma cidade alemã colorida que respira moda com seus cidadãos sorridentes e as sombras por trás daquilo, dando suporte a uma escalada de terror e morte além das fronteiras. Acompanhamos Jojo por uma jornada de aprendizado que passa pela dor física e espiritual, um amadurecimento catalisado por traumas profundos, no qual seu universo imaginário é destruído revelando um mundo implacável e bem pouco divertido. Mas nem tudo são trevas. A Alemanha nazista ainda abriga cidadãos que têm consciência da loucura de seu líder e, de modos diferenciados, se opõem à guerra, torcendo para que acabe com a vitória dos Aliados.  

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Como é típico em comédias satíricas, as situações são exageradas e os personagens são caricatos. Temos o Capitão Klenzendorf, vivido por Sam Rockwell, um militar que devido a feridas de combate foi rebaixado a instruir a juventude hitlerista. Klenzendorf, à medida que o filme passa, revela suas várias camadas. Não é apenas um assassino bruto, um militar obtuso, mas alguém consciente que desenvolverá uma relação praticamente paternal com o pequeno Jojo, alguém que também esconde uma espécie de segredo íntimo impossível de ser declarado a um mundo desenhado por Hitler. A Fraulein Rahm (Rebel Wilson) é a mais caricatural do conjunto de sorridentes nazistas. Com tiradas tão absurdas que soam hilárias, Rahm é um canal verborrágico de insultos criativos, instruções e ensinamentos absurdos, retratando judeus como demônios e mulheres como servas do Reich gerando filhos.

Waititi se revela mais uma vez um mestre na arte de selecionar e encaixar trilhas sonoras nas cenas. Komm gib mir deine Hand, uma versão em alemão de I Want to Hold Your Hand do Beatles, abre o longa reforçando a empolgação e energia provocada pela figura do Fuher entre a sociedade alemã, equiparando o fenômeno da popularidade de Hitler à dos Beatles na Inglaterra. Destacam-se também I Don’t Wanna Grow Up, de Tom Waits, Everybody’s Gotta Live, do Love, e Heroes de David Bowie em um encerramento absolutamente catártico.

A atuação de Scarlett Johanson como a mãe do protagonista garantiu uma indicação de melhor atriz coadjuvante em um ano absolutamente espetacular em sua carreira, incluindo desde um blockbuster como Vingadores Ultimato, passando por uma produção intimista para a gigante do streaming, História de Um Casamento, da Netflix, e um produto ousado e experimental sob a tutela de Waititi. Já o Sam Rockwell parece ter um instinto excelente ao escolher seus projetos. Pelo terceiro ano consecutivo, uma produção na qual atuou foi indicada para o Oscar na categoria de Melhor Filme (as anteriores foram Três Anúncios Para Um Crime, em 2017, e Vice, em 2018).

Jojo Rabbit é engraçado e comovente, empolgante e amargo. Consegue ser colorido e infantil, sombrio e adulto. É como uma mistura estranha de Sacha Bahon Cohen com uma produção conjunta Tarantino/Rodriguez. Talvez seja muito inusual e impopular para vencer um prêmio de Melhor Filme na competição do Oscar, especialmente em um ano com tantos concorrentes gabaritados, mas certamente é uma obra forte, um recado a pessoas que têm uma convicção cega calcada em falso patriotismo. Afinal, a comédia diminui os poderosos e o riso é fonte de dúvida e sinal da racionalidade humana, como afirmou, baseado na lógica aristotélica, o personagem Guilherme de Baskerville no romance O Nome da Rosa, do italiano Umberto Eco. Já o monge Jorge de Burgos o temia por ser um elemento capaz de matar o temor e consequentemente impedir a fé (seja em Deus ou em líderes políticos e religiosos).

Jojo Rabbit (2019)
Diretor: Taika Waititi
Gênero: comédia/drama
Elenco: Scarlett Johansson; Sam Rockwell; Taika Waititi; Roman Griffin Davis
Duração: 1h48min