Guerra Civil – a verdade é o que menos importa

Por meio do extinto selo Vertigo, da editora DC Comics, foi lançada, em 2005, uma série em quadrinhos chamada DMZ — Terra de Ninguém, que narra uma nova guerra civil nos Estados Unidos. Na história, acompanhamos um estagiário de jornalismo que desembarca com uma equipe em Nova York, declarada zona desmilitarizada, para fazer a cobertura do conflito.

Alex Garland é um diretor cujos trabalhos orbitaram no gênero do terror e da ficção científica, mas agora surpreendeu com um drama de guerra de várias formas perturbador. Guerra Civil é um ensaio bem elaborado de um conflito armado urbano que evoca uma parte sensível da história dos Estados Unidos e incomoda por soar como uma espécie de retrato de um possível futuro. 

No filme, acompanhamos uma dupla de jornalistas, formada por Lee (Kirsten Dunst) e Joel (Wagner Moura), que aceitam a missão suicida de viajar quase 500 quilômetros para Washington com o objetivo de conseguir uma entrevista inédita com o Presidente dos Estados Unidos. Se juntam ao grupo o veterano Sammy (Stephen McKinley Henderson) e a fotojornalista novata Jessie (Cailee Spaeny).

Nesse momento, a história assume os ares de um roadie movie, onde pode ser constatada a destruição física e espiritual do país ao longo do caminho. Trata-se quase de uma reescrita moderna da trilha rumo ao coração das trevas do romance de Conrad. 

Ainda que são sugeridos alguns palpites, não é deixado exatamente claro o motivo da divisão da nação. O filme prefere se focar apenas nas consequência, a confusão, o caos provocado pela guerra. No caminho até a Capital, são apresentados orgulhosos cidadãos armados que agem de acordo com o que acreditam, praticando sua própria justiça. Também se apresentam soldados que não estão lutando exatamente por uma causa, mas apenas reagindo ao meio, onde agressão é respondida com agressão, em um estado de desconfiança perene. 

Na reta final do filme, a narrativa que até então seguia com os pés no chão, começa a ser vítima da necessidade de dobrar a história aos desejos do criador, forçando situações que deixam clara a artificialidade do acontecimento, apenas para deixar uma espécie de simbolismo, uma licença de certa forma moralista que esvazia o que foi construído com tanta habilidade até então. 

O retrato dos jornalistas cobrindo conflitos armados foi retratado magistralmente no, baseado em fatos reais, Repórteres de Guerra (The Bang Bang Club, 2010), com o qual Guerra Civil guarda vários paralelos, especialmente no tocante ao comportamento dos protagonistas. Lee e Joel são durões, viram muita coisa até então, sabem como se movimentar em ambientes de combate e, como praticantes de esportes radicais, desafiam os limites sem pensar demais no próprio risco mas, mesmo eles, não sairão imunes ao final da jornada. 

Jesse Plemons, mais uma vez interpretando um psicopata, é responsável por um dos pontos mais simbólicos da trama. “Que tipo de americano é você?”, ele pergunta aos jornalistas. A resposta é a diferença entre a vida e a morte, mas também reflete o estado das coisas no país neste e naquele momento, onde o sentimento do patriotismo está sendo direcionado para justificar qualquer tipo de violência. Nada parece fazer sentido enquanto que, ao mesmo tempo, a vida na guerra parece tão simples: matar primeiro quem pode tentar matar você. 

Quando o mundo parece virado de cabeça para baixo, uma forma de não enlouquecer de vez é se apegar a sua função, ao seu trabalho. Você é um soldado, luta. Você é um jornalista, registra o que está acontecendo. Sua profissão parece uma espécie de garantia de alguma espécie de ordem, de segurança, mesmo que custe a vida dos outros ou a sua própria. 

Gosto como Garland constrói a narrativa, mostrando detalhes discretamente ainda que claramente querendo que o espectador visualize o que ele quer que visualize, no momento correto, sem que também seja explícito demais, sendo óbvio mas no limite certo. Com um olhar ou um simples gesto, como a mão ensanguentada de um soldado, que se movimenta no momento correto, o prolongando, prendendo a atenção e enviando mais de uma mensagem ao mesmo tempo à audiência. 

A trilha sonora se integra à narrativa, criando um clima de tensão e emoção durante o percurso rumo à capital do país, onde descobrimos, junto aos personagens, que o governo oficial está prestes a ser derrubado. Por quê ou quem exatamente? Não sabemos, ainda que deixe entendido que a culpa fora de atitudes do Presidente contra seu próprio povo, que talvez seja uma rebelião justa. Outra pista, deixada lá atrás, é quando informam que jornalistas são sumariamente executados em Washington. 

Essa falta de clareza é grande parte da graça do filme, pois em uma guerra raramente há uma verdade única, mas um duelo entre várias versões, nas quais cada lado acha que está correto. 

A produção da A24 foi uma das grandes surpresas do ano até aqui. Com um orçamento modesto de 50 milhões de dólares, ao menos para uma produção independente, se saiu melhor que um blockbuster convencional de grandes estúdios. Pela primeira vez, a A24 liderou as bilheterias em um final de semana. Para título de comparação, sua estreia rendeu mais que Furiosa: A Mad Max Saga. É um bom sinal para o futuro.

Cenas destacadas:

O que está acontecendo?: Em um estrada, a equipe de jornalistas presencia um confronto entre atiradores. Quem é quem? Por que estão atirando uns nos outros? As perguntas do jornalista não fazem sentido, mas a resposta de um dos soldados simboliza bem a situação como um todo. 

Que tipo de americano é você?: O grupo se vê sob a mira de alguns soldados em frente a uma fossa cheia de cadáveres. Quem está armado é quem detém o poder sobre a vida e a morte. O soldado pergunta a cada um que tipo de americano é. Existe uma resposta que possa salvá-los daquele julgamento arbitrário?

Epifania: Após uma situação de tensão máxima, Lee e Jessie conversam sobre as emoções que passaram até ali. Naquele momento, a veterana percebe que a garota já se tornou outra pessoa. Ela se reconhece em Jessie, e ao mesmo tempo parece não gostar mais de quem ela própria é. 

Guerra Civil (Civil War, 2024)
Diretor: Alex Garland
Gênero: Guerra; Drama;
Elenco: Kirsten Dunst; Wagner Moura; Jesse Plemons;
Duração: 1h49min