Já aconteceu com dois diretores hoje renomados. Começaram com produções baratas, cinema trash abusando do gore em histórias absurdas com um pé ou dois na comédia. Sam Raimi fez sua estreia com The Evil Dead (1981). Peter Jackson surgiu ao mundo com Trash – Náusea Tota (Bad Taste, 1987). Depois, os caras caíram nas graças de Hollywood, o primeiro com trilogia do Homem Aranha protagonizada pelo Tobey Maguire e o segundo com a trilogia de O Senhor dos Anéis. O Jeremy Saulnier ainda não chegou ao topo, mas é como Maquiavel costumava dizer, duas pessoas seguindo o mesmo caminho, uma delas chega ao seu objetivo e a outra, não. Nesse caso, três pessoas.
Festa Assassina é o debut do roteirista e diretor Saulnier. Assim como Raimi e Jackson, seu primeiro filme é uma talentosa comédia de horror trash com litros de sangue e personagens caricatos. Em seguida partiu para produções mais sérias, chamando a atenção em Ruína Azul (Blue Ruin, 2013) e despertando ainda mais o interesse de fãs da violência gráfica em Sala Verde (Green Room, 2015). Ano passado lançou, pela Netlflix, o controverso Noite de Lobos (Hold The Dark, 2018) e acaba de dirigir dois episódios para a terceira temporada da série da HBO, True Detective. Tanto como roteirista quanto como diretor, o jovem cineasta mostra um talento ímpar, sabendo construir climas de suspense e tensão criando tramas intrigantes apesar de simples em essência, com personagens curiosos e uso magistral do xarope de glicose para simular sangue. Os indícios dessas características já podem ser encontradas no seu debut, um filme de terror que se passa no Halloween.
Na noite do dia das bruxas, o agente de trânsito Chris Sharp (Christopher S. Hawley) tem planos de ficar em casa na companhia do gato Lancelot vendo filmes de terror no videocassete, aparentemente um programa não muito diferente do que ele faz todas as noites. Porém, com a negativa do felino de sair da poltrona para seu dono sentar em frente à tv, resolve ir a uma tal festa assassina de um convite que encontrou por acaso na rua, trazido pelo vento. Sharp confecciona uma armadura medieval feita com uma caixa de papelão, um negócio que fica entre o tosco e o genialmente criativo (deu até vontade de construir uma), e sai cruzando Nova York até um galpão abandonado em uma área distante da cidade.
Ao entrar no local da tal festa, se depara com um esquisito grupo de fantasiados que o agarram e o amarram a uma cadeira. Acontece que se trata de uma espécie de coletivo de artistas que planejava matar elaboradamente qualquer otário que comparecesse a tal festa assassina do convite. Aconteceu de o otário ser o Chris.
O protagonista faz o estilo gigante gentil, um bobão aparentemente incapaz de qualquer violência, incapaz até de expulsar o gato da poltrona, um cara que só queria fugir da rotina passando um Halloween divertido em uma festa bacana. Ele até levou um pão de abóbora. A maior parte do filme se passa no galpão, com o grupo decidindo como ele será assassinado. O vencedor da disputa será decidido por Alexander (Sandy Barnett), um tal respeitado mecenas das artes que doará uma bolsa de 300 mil dólares para o melhor artista do assassinato.
A partir de então, coisas inusitadas vão ocorrendo, incluindo conflitos, triângulos amorosos e outros eventos que começam a levar à morte dos artistas enquanto o Chris tenta escapar. O andamento do primeiro e segundo atos do filme são lentos, apresentando apenas diálogos e situações que beiram o nonsense. Os personagens com suas particularidades esquisitas têm seu espaço, cada um tendo realmente algum tipo de importância na trama, nem que seja morrer de forma engraçada. O Alexander é blase, a Lexi (Stacy Rock) é hiperativa, o Zycho (Bill Tangradi) faz o traficante psicótico, Bill (William Lacey) o antissocial que fica o tempo todo jogando em um psp portátil até explodir em um surto assassino, Macon (Macon Blair) um lobisomem bêbado e apaixonado, a colegial milf Sky (Skei Saulnier) e o vampiro Paul (Paul Goldblatt), que aparenta ser o mais normal de todos, mas só aparenta.
No terceiro ato, o gore finalmente entra em cena e o filme assume os ares de um slasher dos bons, com direito a golpes de machado e serra elétrica partindo corpos, mas o humor negro continua com todo tipo de morte inusitada. Efeitos especiais feitos na raça, sem uso de computação gráfica, o que dá um sabor especial de filme antigo, com trilha sonora envolvente com enxertos de heavy metal genérico oitentista. Isso aqui já entra fácil na caixa dos filmes cult trash.
Dá para perceber logo que Saulnier é um sujeito que gosta mesmo de cinema, inserindo diversas referências no longa. Entre o bando de malucos tem uma garota fantasiada da androide interpretada pela Daryl Hannah no primeiro Blade Runner, um sujeito com roupa de uma das gangues do filme Warriors, outro no estilo de um gangster da Família Soprano e até um cara suspeitamente vestido como o Dylan Dog dos quadrinhos italianos. Se o diretor é inexperiente, o elenco é tão quanto (uma parte até adota o próprio nome para os personagens que interpretam), mas todo mundo entrega um trabalho honesto o suficiente para tornar tudo uma experiência divertida, um filme daqueles para reunir os amigos numa noite de trevas e deixar o sangue descer da tela.
Festa Assassina (Murder Party, 2007)
Gênero: Terror/Comédia
Diretor: Jeremy Saulnier
Elenco: Chris Sharp, Kate Porterfield, Tess Porterfield Lovell
Duração: 1h19min