O diretor holandês Paul Verhoeven deixou imagens marcantes na memória cinéfila de muita gente entre a segunda metade dos anos 1980 e meados dos anos 2000: O esquartejamento físico e psicológico do policial Alex Murphy em Robocop: O Policial do Futuro (Robocop, 1987), cabeças explodindo na atmosfera de Marte em O Vingador do Futuro (Total Recall, 1990), os assassinatos com picador de gelo em Instinto Selvagem (Basic Instinct, 1992), as batalhas cruéis contra legiões de insetos assassinos em Tropas Estelares (Starship Troopers, 1997) e o banho de sangue promovido por um psicótico invisível em O Homem Sem Sombra (Hollow Man, 2000). Quantas boas memórias devemos a ele.
Antes destes, seus filmes são desconhecidos do grande público. Depois destes, parece que o diretor entrou em uma espécie de pausa criativa quebrada apenas por dois títulos que passaram meio despercebidos. Recentemente, o nome de Verhoeven foi posto novamente na devida evidência devido à polêmica provocada por Elle, uma produção francesa de 2016 que levantou cabelos por aí.
Elle traz como protagonista Michèle (Isabelle Huppert), uma empresária bem sucedida, dona de uma empresa de desenvolvimento de jogos eletrônicos. Sorte no jogo, azar em todo o resto. Sua família é um desastre dramático: O filho único, Vincent (Jonas Bloquet), é um adulto sem rumo que insiste em casar com Josie (Alice Isaaz), uma mulher histérica e oportunista que o controla; o ex-marido, Richard (Charles Berling), é um escritor falido; a mãe, uma idosa remendada por plásticas e botox, quer casar com um michê.
O filme gerou bastante controvérsia pelas pesadas cenas de estupro, filmadas de forma bastante realista, como é tradição do diretor em sequências de violência. Críticos no Reino Unido o acusaram de erotizar o estupro, gerando até censura. E é justamente com o impacto de uma dessas cenas que Elle inicia a narrativa. Não bastasse o choque gráfico na tela, o comportamento da protagonista ao longo da trama põe fogo na audiência. Após consumado o ato, Michèle aparenta agir como alguém em estado de choque, apática, com movimentos mecânicos, procurando fingir que está tudo bem enquanto tenta retomar as atividades do cotidiano. Mentalmente fica repassando a agressão, imaginando realidades alternativas nas quais teria conseguido reagir contra o estuprador. Porém, sua psique é mais complexa, e suas atitudes começam a confundir e perturbar o espectador mais que as cenas de violência.
Verhoeven primeiramente parece tecer um filme dramático, sobre a dor física e psicológica de uma mulher solitária violentada em sua própria casa por um homem mascarado. Algo como Valente (The Brave One, 2007), estrelado por Jodie Foster. Depois, o filme migra para um suspense, no qual a protagonista, ainda traumatizada, tenta investigar a identidade do agressor e busca armas para se defender de um novo ataque que parece iminente, uma vez que o mascarado continua rondando por perto, deixando mensagens telefônicas e rastros físicos de novas invasões, como o lençol da cama com sêmen. É então que o quadro reverte totalmente quando o algoz é desmascarado, levando a história para um rumo inesperado. O que parecia se encaminhar para um ato de vingança, se torna uma espécie de jogo doentio entre duas mentes insondáveis, esticando ao limite a tolerância da audiência frente ao que parece se desenrolar na tela.
Michèle é uma mulher de gelo cuja vida pessoal parece irremediavelmente estilhaçada devido a traumas de infância por conta do maligno passado do pai. Comandando uma equipe predominantemente formada por homens, em uma área de entretenimento conhecida pela quantidade de trolls sexistas, ela dirige o negócio com punho de ferro. O jogo em desenvolvimento pela empresa, inclusive, possui uma cena na qual uma espécie de demônio violenta uma mulher, e ela, com absoluto sangue frio, usa sua própria experiência para aperfeiçoar a cena.
Pode-se notar que a protagonista gosta de controlar tudo, especialmente empregados e amantes. Os homens da família, filho e ex-marido, tentam fugir desse controle, mas sempre tem de recorrer financeiramente a ela. Agora, surge um algoz encapuzado que a deixa totalmente vulnerável. A busca pelo controle e dominação masculina é uma das chaves para entender as atitudes da protagonista no perverso jogo que se formará.
Elle é uma obra perturbadora que desenvolve um roteiro complexo, lidando com personagens desagradáveis, instáveis e com graves problemas psicológicos. Verhoeven aos poucos vai revelando naturalmente detalhes pessoais de cada um, traços de personalidade que se estilhaçam de acordo com gatilhos determinados. Em um plot twist infernal, o vilão deixa de ser vilão e esse papel parece ser assumido pela vítima. Duas mentes perturbadas que iniciam um jogo imprevisível.
O filme é uma adaptação do livro “Oh…” de Philippe Djian. Ao chegar às mãos de Verhoeven, ele imediatamente se interessou pelo projeto. Inicialmente a produção seria rodada nos Estados Unidos, mas as atrizes que foram procuradas para o papel da protagonista, quando liam o roteiro, o rejeitavam. O papel de Michèle foi oferecido a nomes como Nicole Kidman, Sharon Stone, Julianne Moore, Diane Lane, Marion Cotillard e Carice Van Houten. Assim, a solução foi se voltar para a França, onde Isabelle Huppert, ao ficar sabendo do novo projeto do diretor holandês, se mostrou ansiosa pelo papel.
A atriz tinha 63 anos durante as filmagens, o que fora sem dúvidas um desafio ante a exposição necessária requerida, com cenas de sexo vigorosas envolvendo nudez explícita e violência física. O diretor ainda teve de aprender francês para poder se comunicar com o elenco, seguindo a tradição do país que dita que “um filme francês deve ter uma equipe francesa”. Elle certamente se integrará ao seleto grupo de filmes citado no primeiro parágrafo.
Elle (2016)
Diretor: Paul Verhoeven
Gênero: Drama/Suspense
Duração: 2h10m