No final da década de 1990 se destacaram vários filmes colocando em xeque a realidade. Produções como O Show de Truman: O show da vida (The Truman Show, 1998), Cidade das Sombras (Dark City, 1998), 13º Andar (The Thirteenth Floor, 1999) e Matrix (The Matrix, 1999) chamaram a atenção nos cinemas em um curto espaço de tempo. Algumas, claro, receberam mais reconhecimento nas bilheterias que outras.
O filme do diretor Alex Proyas, apesar de ter se mantido, afinal, nas sombras, arrebanhou com o tempo uma boa parcela de fãs, o suficiente para ser colocado no seleto hall dos cult movies. Cidade das Sombras apresenta tantas qualidades que, caso fosse um produto da atualidade, já seria lançado com o planejamento de várias sequências, afinal, cria um universo novo, instigante e cheio de possibilidades, pronto para ser estragado pela sede monetária dos executivos dos estúdios.
Em uma cidade de nome desconhecido, um homem sem memória desperta em uma banheira de um quarto de hotel. Não sabe quem é, como chegou lá e muito menos consegue explicar a mulher morta no apartamento. Seguindo pequenas pistas, o desmemoriado John Murdoch (Rufus Sewel) descobre que é casado com a cantora Emma (Jennifer Connelly) e que, de acordo com as pistas seguidas pelo detetive Bumstead (William Hurt), é o principal suspeito de ser um serial killer. Além de procurado pela polícia, Murdoch também é perseguido por um grupo de encapotados pálidos e sem cabelo mais tarde identificados apenas como os “Estranhos”.
A única pessoa que parece entender o que está acontecendo com o mundo é o Dr. Daniel Schreber (Kiefer Sutherland), um psiquiatra que tem ligações com os misteriosos seres que habitam os subterrâneos e que conseguem modificar a realidade de acordo com a vontade deles. O problema é que Schreber parece estar manipulando a todos apresentando um comportamento dúbio que enfurece e confunde Bumstead e Murdoch e ainda provoca desconfiança nos Estranhos. Para Murdoch, quando se desconhece a própria identidade, a realidade se torna questionável, assim como todos ao redor.
Nos quadrinhos da DC Comics há uma muralha que delimita o universo, marcando um ponto no qual nenhum ser vivo pode ultrapassar. Até deuses que tentaram descobrir o que havia além do fim do universo fracassaram e, como penalidade pela ousadia, foram incorporados ao obstáculo, se tornando parte da muralha. A fantasia de ir além dos limites conhecidos do mundo sempre esteve presente na história humana, com a ficção científica precedendo feitos fantásticos, como a descoberta de terras desconhecidas, a ida ao fundo do mar ou a conquista do espaço.
Assim como o Truman de Jim Carrey encontrou o limite de seu mundo e pagou o preço por ter insistido em transpassá-lo, o Murdoch de Rufus Sewel dedica a mesma energia para encontrar o além-mar de sua cidade. A diferença entre ambos é que Murdoch não terá de perder sua vida pregressa ao se tornar onisciente de sua verdadeira situação e status pois possui apenas fragmentos de quem foi. É essa desvantagem aparente que o faz seguir os rastros de sua suposta infância em busca do local onde ele teria sido mais feliz junto aos seus pais, a genérica, assim como tudo o mais na cidade, incluindo hotéis e restaurantes, Praia da Concha.
A jornada de um desconhecido rumo ao início de sua origem é um dos charmes do roteiro elaborado por Proyas, ancorado em termas universais e narrativas clássicas como a jornada do herói. Murdoch é o “Escolhido”, alguém que, contrariado a princípio, é lançado a uma aventura que poderá salvar a humanidade. A história começou a se formar na mente do cineasta logo após ter finalizado O Corvo (The Crown, 1994), mais um trágico sucesso embebido em trevas. Desde então o projeto passou por vários estúdios que acabavam não querendo ir em frente por divergências com algumas ideias e pontos do roteiro.
Rufus Sewel foi escalado por não ser um ator tão conhecido do grande público, casando com o papel do protagonista, um anônimo e desmemoriado que, assim como o espectador, não sabe o que está acontecido consigo nem com a cidade. Até hoje causa estranheza Kiefer Sutherland no papel do psiquiatra. Schreber se movimenta, fala e se comporta com uma pessoa bem mais velha, alguém já na fase final da vida, mas com uma sapiência digna do tempo vivido. O próprio ator teve a mesma impressão de inadequação quando foi indicado para o papel, mas a justificativa de Proyas foi de que alguém mais jovem, que ainda vislumbrava uma vida pela frente, faria mais sentido para o papel determinante que desempenha na trama. A explicação que o filme deixa transparecer para o debilitado estado físico e mental do personagem é que foi resultado de tortura que sofrera nas mãos dos Estranhos. Ainda sobre o elenco vale citar a escalação de William Hurt, protagonista de outro filme cult abordando as fronteiras da realidade, Viagens Alucinantes (Altered States, 1980).
Uma obra tão dependente de efeitos especiais corria o risco de envelhecer mal, mas isso não aconteceu graças à habilidade em misturar efeitos práticos com CGI. O cenário urbano, principalmente nas primeiras imagens do longa, lembra um pouco produções do expressionismo alemão, com construções que parecem tortas e mal acabadas. Há uma sensação de decadência, de sujeira incrustada nas ruas, nas paredes, nos ambientes que nunca recebem a luz solar e portanto são frias e úmidas como se tivesse acabado de chover.
O roteiro imprime uma narrativa ágil, fornecendo enigmas e resoluções sem provocar a suspeita de apenar enrolar o público, não se perdendo em empilhar mistérios para sufocar a audiência. Assim como o protagonista, o espectador que inicia a jornada cego começa a entender rapidamente as regras daquele mundo. Na Cidade das Sombras, as vidas dos seus habitantes podem ser alteradas completamente de um dia para o outro. Um trabalhador pobre pode se tornar um milionário no dia seguinte e até um assassino se tornar um herói. Aqueles que começam a perceber as modificações da realidade enlouquecem. Na antiga Grécia não eram os loucos considerados profetas por falarem coisas que os homens comuns não compreendiam?
Ainda que estas explicações sobre a cidade e os Estranhos não esclareçam absolutamente todos os pontos, a audiência não se sente frustrada, mas instigada a completar por si mesma algumas lacunas. Por exemplo, os Estranhos querem desvendar a alma humana, mas ao mesmo tempo não gostam de água, o líquido primordial. Isso sugere que as criaturas são seres totalmente diferentes do que entendemos por vida, afinal, segundo os cientistas, só pode haver vida onde há água.
O roteiro fomenta e sacia a curiosidade nas medidas certas, mantendo o público engajado na história, uma ficção científica com toques de espiritualidade, misturando alta tecnologia do nível que beira à magia com princípios do satanismo e zen-budismo em uma busca pelo elemento que torna os humanos tão especiais, o que os permite amar, sonhar, continuar vivendo.
Segundo o próprio diretor, havia de fato a intenção de criar uma continuação explorando o que aconteceria imediatamente após os últimos acontecimentos do longa. O protagonista seria ou não corrompido pelo poder que adquiriu? Murdoch seria mesmo um serial killer ou apenas um inocente, sem livre arbítrio, manipulado por forças superiores para se agir de acordo com o que fora pré-determinado? A questão permanece em aberto.
Cenas marcantes:
A Sintonia: À meia-noite, todos os habitantes da cidade caem em um sono profundo. Nesse momento, os Estranhos alteram suas mentes, inserindo novas memórias, dando novas identidades e modificando partes da própria cidade.
A emulação: Para encontrar Murdoch, um dos Estranhos se submete a receber um enxerto com suas memórias, se tornando ele também Murdoch.
O limite: Os personagens da trama finalmente chegam ao limite de seu mundo, uma barreira que cobrará um preço para ser ultrapassada. O que há além da cidade das sombras?
Cidade das Sombras (Dark City, 1998)
Diretor: Alex Proyas
Elenco: Rufus Sewel; Kiefer Sutherland, Jennifer Connelly, William Hurt
Gênero: ficção científica