Os executivos da Warner, em um comportamento que já estava se tornando padrão, estavam convencidos de que Bullitt seria um desastre antes mesmo da estreia. O roteiro tinha passado por várias modificações de última hora. O diretor e o astro insistiram que a sequência de perseguição de carros não deveria ser feita em estúdios como era comum, mas na cidade de São Francisco, fazendo o orçamento estourar. Steve McQueen, espécie de símbolo da contra cultura e rebeldia na época, faria um personagem ligeiramente diferente do que o público estava habituado, um oficial da lei. Um clima pesado repleto de energia negativa pairava no ar quando o filme foi finalizado.
Dois anos após a estreia, Bullitt havia arrecadado $45 milhões de dólares em cima dos $5,5 milhões que havia custado, e McQueen era elevado ao status de ator mais durão do cinema, se tornando pelos 10 anos seguintes um dos gigantes de Hollywood. “Eu disse à Warner que o filme seria um fracasso caso a sequência de perseguição fosse falsa, mas nem nós sabíamos o quão selvagem a coisa iria se tornar”, comentou o ator.
O segundo filme dirigido por Peter Yates, e o primeiro que ele fez na América, foi um dos títulos que contribuíram para marcar definitivamente o status de Steve McQueen. Se analisarmos o roteiro em si, não dá pra notar nada demais além de um thriller policial típico. Na história, o ambicioso Promotor Walter Chalmers (Robert Vaughn) incube o tenente da polícia de São Francisco, Frank Bullitt (Steve McQueen), de vigiar um membro de um grupo mafioso que concordou em testemunhar em um comitê do senado. Mas o esquema de proteção do sujeito é burlado e ele sofre um atentado, ficando entre a vida e a morte. Daí Bullitt começa a sofrer pressão do promotor para levar a culpa de tudo enquanto tenta descobrir pistas do assassino que o levam de uma pergunta a outra, sempre ficando à beira do precipício.
Mesmo contando com algumas reviravoltas na história, o filme segue um roteiro bem clichê para o gênero, mas o magnetismo do ator em interpretar um policial que, por mais que se esforce, não consegue resolver os crimes e parece totalmente insensível a garotas com a garganta cortada em quartos de hotel, confere à produção legitimidade. Quando sua namorada, Cathy (Jacqueline Bisset), o confronta sobre como aguenta estar vivendo em um esgoto, cercado por toda aquela violência, Frank responde: “É lá que está a metade de tudo. E não se pode fugir dele.”
Era justamente nesse esgoto onde as produções da nova década iriam chafurdar à vontade durante os próximos anos. Dele iriam emergir personagens como Travis Bickle e Benjamim Willard, espalhando sua podridão interior pelo mundo, para o horror de pessoas como a Cathy, que preferiam ignorar a violência e a corrupção ao seu redor. A Nova Hollywood na verdade já havia chegado no ano anterior com Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas (1967), mas Bullitt já demonstrava algumas características dessa nova geração, apresentando uma narrativa pé no chão e com final um tanto quanto amargo e inconclusivo, contendo picos de violência em seu caminho.
O Bullitt de McQueen é marrento, um tanto quanto cínico e não hesita em comprar briga com seus superiores. Uma pedra de gelo lapidada pela convivência com a violência e a morte em uma cidade que vendia a imagem de paz e amor para o mundo. Em muitos sentidos, McQueen mantém o seu personagem como um símbolo de resistência à opressão do sistema, simbolizado nesse caso pela figura do promotor que visa promoção pessoal aos benefícios à sociedade. Mesmo com sua carreira ameaçada, Frank insiste em não entrar em acordo com a autoridade superior e se arrisca em manobras que beiram a ilegalidade, como manter escondido um cadáver para atrair respostas, ainda que aparente buscar mais vingança que justiça com suas ações.
O personagem foi inspirado na personalidade de Dave Toschi, um dos detetives encarregados de encontrar o assassino serial Zodíaco, que assolou a Califórnia na década de 1960. No filme dirigido por David Fincher em 2007, coube a Mark Ruffalo interpretar o policial. Mas, decididamente, Frank Bullitt é Steve McQueen mais que Toschi. Amante de corridas, o ator inicialmente insistiu em fazer ele mesmo as cenas pilotando o Mustang.
Mesmo com todos esses elementos, Bullitt não é exatamente lembrado por sua história, mas pelo modo como foi filmado, em especial, pela frenética cena de perseguição pelas ruas de São Francisco. Uma crítica no jornal National Observer dizia: “Tudo o que você ouviu falar da cena de perseguição em Bullitt provavelmente é verdade…um choque ensurdecedor e terrível.” A Life afirmava: “Um história de crime com um toque genial…uma sequência de ação que deve ser uma das melhores da história do cinema.” Até hoje essas afirmações se mantém verdadeiras, ainda mais se comparadas às cenas de produções modernas como as da franquia Velozes e Furiosos. A disputa entre um Dodge Charger e um Mustang GT continua sendo apontada como uma das melhores cenas de perseguição da história do cinema.
Antes de começar a gravar, todo mundo envolvido de alguma forma, a equipe de apoio, a polícia, os dublês o diretor e Steve entravam em discussão. Chegou um momento em que perceberam que não sabiam o que fazer porque simplesmente ninguém tinha feito aquilo antes: uma cena de perseguição com veículos a mais de 150 Km/h no meio da cidade e não dentro de um estúdio. Bud Elkins, o dublê piloto do Mustang, afirma ter sido a primeira vez que uma cena daquelas foi filmada com as câmeras em velocidade de gravação normal. Tudo o que o espectador vê na tela é como realmente aconteceu. Um realismo que de alguma forma alguém que vê o filme pela primeira vez consegue perceber e então fixa aqueles 10 minutos para sempre em suas lembranças, mesmo que esqueça todo o resto do filme.
McQueen queria de fato fazer a melhor cena do gênero até então. Nada de truques de câmeras, ângulos ou qualquer outra técnica que deixasse transparecer uma velocidade artificial. Teria de ser algo verdadeiro e dinheiro não seria problema. “Eu sempre achei que uma sequência de corrida, uma perseguição nas ruas, poderia ser bem emocionante por conta de todos os elementos reais lá, como desviar de um carro estacionado. O público estava sentado vendo alguém fazer o que tenho certeza que quase todos também gostariam de fazer”, disse o ator à revista Motor Trend.
A sequência foi filmada durante a páscoa de 1968. A ponte Golden Gate estava originalmente incluída na rota, mas as autoridades vetaram. Apenas cerca de cinco quadras da cidade foram liberadas para as filmagens. McQueen era o grande motivador para que tudo acontecesse, enquanto o diretor Peter Yates e o dublê Carey Loftin cuidava de toda a logística.
A princípio, Steve queria fazer suas próprias cenas de ação, mas a decisão não durou muito. Ele errou uma curva, detonou os pneus do veículo e tudo mais. Estava no filme, mas havia sido sem querer. Mas dizem que a esposa dele na época teria insistido para que ele desistisse da ideia. Entra então o Elkins. Ao todo, quatro pilotos participaram da corrida. McQueen, Bud Elkins, Bill Hickman e Carey Loftin, fora Pat Houstis, que pilotou o terceiro carro nas ruas, equipado com uma câmera manejada pelo cinegrafista Bill Fraker.
Um dos critérios para escolha do Mustang foi que se encaixava como o carro de um policial, alguém que não é rico o bastante para ter um carro legal e bem conservado. A Warner comprou dois Dodge Chargers, mas a concessionária não ofereceu nenhum desconto. Depois do sucesso do filme e consequente aumento das vendas do modelo, a Chrysler se mostrou bastante generosa com a Warner em seus próximos projetos.
Tanto o Charger quanto o Mustang precisaram passar por algumas modificações para suportarem as filmagens, especialmente por conta das íngremes ladeiras de São Francisco. Quem lembra dos carros batendo seguidamente ao descerem as ladeiras entende o grau de esforço envolvido. A suspensão dos veículos teve de ser reforçada, adicionando também incrementos ao câmbio e ao desempenho do sistema de ignição, além de reforço nos carburadores. Tudo foi comandado por Max Balchowsky, considerado o melhor do ramo naquele momento.
Para as cenas internas, duas câmeras foram colocadas no interior dos veículos e pintadas de preto. McQueen relembra que aconteceram algumas cenas e incidentes que não foram exatamente planejados, a maioria durante as descidas nas ladeiras da cidade. “Lembra da batida no sequência final? Eu estava a mais de 100 Km/k. Eu estava chegando em Bill (o outro piloto). Meu carro estava se desintegrando. As maçanetas das portas caíram, os para-choques caíram e a armação de aço da dianteira quebrou. O Mustang estava literalmente caindo aos pedaços.”
O assassino interpretado por Paul Genge, no interior do Dodge, estava tão nervoso que, por vezes, a equipe quase teve de fazê-lo tomar tranquilizantes antes de entrar no carro. A sequência envolvendo o Charger e o Mustang entrou para a história do cinema. McQueen sabia o que queria e como queria. Ele sabia como uma cena de perseguição deveria ser. Até então se duvida muito que tenham a coragem e a ousadia de repetir a mesma proeza.
Bullitt (1968)
Direção: Peter Yates
Roteiro: Alan Trustman; Harry Kleiner; Robert L. Fish
Gênero: Ação; Policial; Suspense
Duração: 113 minutos