O holandês Paul Verhoeven chamou a atenção do mundo com filmes de ficção científica como Robocop: O Policial do Futuro (1987) e O Vingador do Futuro (Total Recall, 1990), mas foi uma cena comum em um thriller que se tornou talvez a cena mais comentada da sua carreira: a cruzada de pernas de Sharon Stone em Instinto Fatal (Basic Instinct, 1992).
Sexo e violência, um dos combos mais pedidos nas produções cinematográficas, sempre estiveram presentes nas produções de Verhoeven. O pequeno filme holandês Traição (Steekspel, 2012) gira em torno de uma jovem que mantém relações sexuais com um homem mais velho e casado. O fora da curva Showgirls (1995) aposta no sex apeal das dançarinas de Las Vegas. Vale lembrar também a cena de violência sexual em O Homem Sem Sombra (Hollow Man, 2000), que inclusive foi suavizada.
Sem perder os instintos com o passar das décadas, o holandês descabelado voltou a chamar a atenção em Elle (2016), um filme que levantou discussões sobre o quão pesada pode ser uma cena de estupro e também por um plot que soou absurdo para muitos no tocante ao tema da violência sexual. Violência sexual é de fato um tema que o diretor usa pesadamente desde sua estreia em Hollywood, como visto no também medieval Conquista Sangrenta (Flesh+Blood, 1985). Agora, o cineasta parece ter ido além e misturado religião e sexo aos moldes de O Exorcista (The Exorcist, 1973) de Friedkin.
A história da freira Benedetta Carlini, foi trazida à tona para os nossos dias por uma historiadora que fazia pesquisas sobre economia nos arquivos da cidade de Florença. A partir disso, Judith C. Brown escreveu Immodest Acts — The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Italy, publicado em 1987. Logo a obra entrou no radar de Hollywood. Como não é incomum, passaram-se décadas até finalmente ser filmado.
Benedetta, o filme, conta a jornada de uma jovem no início do Século VXII que, ao escapar da morte por conta de uma doença, é entregue pela família a um convento para se tornar freira, cumprindo uma promessa feita pela mãe. Sexo, doença, inquisição, homossexualidade, loucura e morte são os elementos que aparecem sem pudores no longa, mostrando que o diretor não suavizou em nada o seu estilo gráfico.
A jovem freira é introduzida como uma criança inocente que crê realmente poder conversar diretamente com a mãe de Cristo. Em seus primeiros dias no mosteiro ocorre um incidente com uma estátua de Maria, que desaba sobre ela. Escapando milagrosamente de morrer esmagada, seguindo uma espécie de instinto, a criança põe a boca no seio desnudo da representação da Virgem, o que pode ser apontado como um sinal de preferência sexual analisando de acordo com os acontecimentos futuros.
A pureza e a lucidez de Benedetta (Virginie Efira) começam a ser postas em dúvida a partir da chegada de Bartolomea (Daphen Patakia), uma camponesa que procurou o mosteiro para fugir dos maus tratos da família, conseguindo acolhimento somente graças à intervenção da protagonista. Aqui vale apontar que se ressalta o caráter financeiro e excludente da religião. Para se tornar freira, é necessário que a família pague pela educação monástica. Não é algo acessível para os pobres.
Bartolomea, com seu jeito espontâneo, desperta o desejo sexual em Benedetta. A camponesa não se envergonha dos prazeres do corpo, incluindo o de defecar e urinar, e não se sente reprimida por sua experiência sexual pregressa, ainda que esta componha a prostituição e até o incesto. A protagonista, ao invés de reagir e retribuir aos instintos que a colega lhe provoca com amor, em princípio tenta reprimi-los pela força do ódio, aproveitando uma oportunidade para aplicar uma severa penalização na recém-chegada, um ato que balança entre a loucura e o puro sadismo.
A Igreja retratada por Verhoeven naqueles tempos não é apenas uma instituição de repressão, mentiras e vilania. A administradora do mosteiro, irmã Felicita (Charlotte Rampling), mostra-se naquelas circunstâncias de tempo e lugar até que uma líder espiritual razoável, justa. Quando finalmente se rebela à farsa da santidade de Benedetta, que àquela altura ascendeu ao comando do mosteiro por apresentar os stigmatas, o faz após uma tragédia, despertando a cruel instituição da inquisição para combater o que ela considera um sacrilégio.
Assim como em Conquista Sangrenta, o momento da história é o da peste negra, que tem varrido a Europa, chegando também à cidade do mosteiro, complicando ainda mais o momento. Quando junta o fanatismo religioso de uma mulher que entrou no delírio de ser a escolhida de Deus, o contágio da peste fora de controle e a inquisição, tudo se consome em um jorro de violência e delírio com uma população rebelada.
Cenas marcantes:
Crueldade: Benedetta, ao perceber os sentimentos que a recém-admitida desperta nela, reage com ódio, aproveitando uma ocasião para aplicar uma bárbara punição à camponesa.
Inquisição: Decidido a desmascarar a farsa que está acontecendo no mosteiro, o alto clero autoriza a tortura de Bartolomea para extrair uma confissão do relacionamento homossexual entre ela e Benedetta.
Rebelião: Durante a aplicação da sentença, Benedetta consegue voltar a multidão contra a própria igreja, dando início a uma rebelião catalisada pela ameaça da peste negra.
Benedetta (2021)
Direção: Paul Verhoeven
Gênero: Drama
Elenco: Virginie Efira; Charlotte Rampling; Daphne Patakia
Duração: 2h11min