Barry Lyndon é um filme de escolhas, um conto sobre a perda da inocência, apresentando a ascensão, ou a aparência de uma, e queda de uma espécie de Ícaro medieval. O filme de Stanley Kubrick, produtor, roteirista e diretor, já vem com spoilers embutidos, um narrador em terceira pessoa que anuncia o que acontecerá em seguida, o que pode ser frustrante para alguns. O diretor foi questionado sobre o uso desse recurso narrativo em entrevista a Michel Ciment, ao que respondeu: “Barry Lyndon é uma história que não depende de surpresa. O que é importante não é o que vai acontecer, mas como irá acontecer.”
Baseado em um romance praticamente esquecido, The Luck of Barry Lyndon, de William Makepeace Thackeray, Kubrick empregou todo seu característico esmero e fanatismo cinematográfico para transpor para a tela o século XVIII. Recusou-se a utilizar iluminação artificial, investiu em trajes e cenários montando uma obra detalhista com 3 horas de duração.
Poderia ser mais uma jornada do herói, mas soa estranho classificar a história de Barry Lyndon assim. No imaginário comum heróis são altruístas e, mesmo que encontrem um final trágico, este é honroso e rende bons frutos. São éticos acima de tudo, visam sempre uma consequência virtuosa para suas ações. Redmond Barry (Ryan O’Neal), o protagonista, não é honrado nem virtuoso, ou melhor, perde essas qualidades ao longo de sua jornada, se é que já as teve.
Em nossas trajetórias individuais, nos pegamos em algum ponto fatalmente nos perguntando como nossa vida poderia ter sido diferente, refletindo sobre as escolhas determinantes que tomamos, seja por acaso ou influenciadas pelas circunstâncias de cada momento. O famoso “e se….?”. A vida só pode mesmo ser mesmo entendida vista em reverso.
Redmond é um irlandês pobre, um garoto que vive com a mãe em uma pequena comunidade. Um sujeito simples, resultado do seu entorno, talvez alguém um tanto quanto inocente para a idade. Apaixona-se por sua prima e fica inconsolável ao saber que esta se casará com um oficial do exército, um homem de posses. Desafia-o para um duelo.
Nesse momento, Redmond poderia ter ouvido os conselhos dos amigos e parentes, deixando a pobre garota ser feliz com outro que não ele. Aqui seu destino começa a ser modificado por suas próprias ações e reações. Conformado com o casório, se tornaria apenas mais um camponês. Casaria com alguma outra garota do povoado, teria filhos e morreria no curto intervalo de tempo que a idade média concedia ao homem.
Ao ir em frente com o duelo, sua jornada involuntária pelo mundo começa. O que aconteceria se não fosse assaltado pelo caminho, o obrigando a se alistar no exército inglês para sobreviver? Caso tivesse tido a coragem de escrever para a mãe relatando a perda de sua pequena fortuna, teria recebido socorro do amigo endinheirado, o mesmo que encontra no campo de batalha.
Não suportando a perspectiva de passar seis anos enfrentando a morte em uma guerra sem sentido, resolve mais uma vez alterar seu destino desertando para terminar capturado em um hostil país vizinho, aceitando mais uma vez ser um soldado para sobreviver. Mas antes, poderia ter se tornado um camponês prussiano ao se unir à bela loira que o abrigou e o alimentou, estando ela a esperar que seu marido, um dia, retorne da guerra. Barry poderia aguardar o momento em que isso aconteceria, ou não. Contabilizamos até então, cinco pontos de inflexão na vida de Redmond.
Outra guinada foi a decisão de salvar seu capitão da morte, ação que lhe rendeu a estima de pessoas poderosas dispostas a lhe estenderem a mão, mas não sem antes exigirem certo esforço, mais algumas provas de confiança.
Barry poderia ter seguido carreira na Prússia, mas para sempre seria manipulado e estaria a mercê da gratidão e estima de seus benfeitores. Ainda assim, parecia uma vida com mais perspectivas que a que teria em sua verde Irlanda. Ao trair a Inglaterra, não apresenta nenhuma dificuldade em também trair a Prússia. Escolheu o caminho da traição, mas qual obrigação teria o irlandês para com pátrias estrangeiras?
De volta à nação madrasta, agora como gambler profissional, um homem cínico, enxergou em uma rica mulher casada a oportunidade para ser finalmente alguém. Ao conseguir o almejado casamento, poderia assumir os ares de dedicado marido e bom padrasto, mas o mundo já o tinha apodrecido. Resolveu seguir como cafajeste, pagando o amor com descaso. Um Barry íntegro teria envelhecido bem ainda que à sombra de outra pessoa. O Barry inconsequente agrediu seu afilhado, desonrou sua esposa e gastou o que restou de sorte e fortuna para tentar conquistar a estima um Rei.
Se sua vida começou com um duelo, terminou em um novo duelo, gastando seu último ponto de inflexão e encerrando seu destino. Ao escolher dar uma chance a quem o odiava, vendo refletida em sua frente a imagem do jovem medroso mas orgulhoso e turrão que fora, perdeu sua independência e autonomia para quem o desprezava.
Redmond Barry teve muitas vidas à disposição para escolher mas, diante de mais um ponto de inflexão, deixou que outro decidisse por ele, entregando a compaixão que renegara no passado e assim finalizando sua jornada.
Principais pontos de inflexão:
01. Duelo. Redmond desafia um oficial do exército inglês para um duelo. Apesar de todos os argumentos, não desiste de levar até o fim o conflito.
02. Soldado. Longe de casa e sem dinheiro, o jovem irlandês resolve se alistar no exército inglês para sobreviver.
03. Prussiano. Redmond decide ser um desertor e, disfarçado como oficial, adentra o território ocupado pelo exército prussiano, onde mais uma vez se vê obrigado a se alistar, trocando as cores do uniforme.
04. Traidor. Ao salvar a vida de seu comandante em batalha, Barry ganha a promessa de ascender na carreira pública, mas primeiro tem de aceitar uma missão de espionagem, onde decide fazer jogo duplo.
05. Marido. De volta à Inglaterra, o agora gambler encontra no casamento com uma rica viúva a oportunidade de se tornar um homem rico, mas sua mãe o alerta de que viverá para sempre à sombra da mulher.
06. Duelo parte II. Caído em desgraça, o agora Barry Lyndon é desafiado por seu afilhado para um duelo. Vendo-se refletido no jovem, comete um erro fatal que encerrará sua jornada.
Barry Lyndon (1975)
Diretor: Stanley Kubrick
Gênero: Drama
Elenco: Ryan O’Neal, Marisa Berenson, Patrick Magee
Duração: 3h5min