Ao Pó Voltará – religião, ciência e porcos em decomposição

Eis aqui um dos produtos cinematográficos mais exóticos de 2018. Um filme sobre um homem religioso de uma comunidade fechada, em luto pela morte da esposa, que busca ajuda da ciência para superar esse momento de uma forma totalmente não convencional. Trata-se do debut do diretor Shawn Snyder, roteirista, ator, produtor, técnico de som e outras habilidades, cuja experiência anterior era apenas com curtas metragens.

No longa, encontramos Shmuel (Géza Röhrig), um judeu ortodoxo que passa pelo luto recente da perda da mulher, acometida por câncer. Com duas crianças para cuidar, apesar das orientações do rabino e apoio de sua comunidade, Shmuel passa a sofrer com terríveis pesadelos nos quais o corpo de sua falecida cônjuge apodrece em cenas bizarras. Essa perturbação o leva a procurar saber como se dá as fases de decomposição do corpo humano após o enterro, o que gera situações complicadas e hilárias.

Em busca da informação mais científica possível, o atormentado homem vai parar em uma universidade, onde conhece o professor Albert (Matthew Broderick). As explicações fornecidas por meio de um livro que mostra a degeneração de um porco, ao invés de saciar, intensifica sua obsessão, o fazendo levar um porco vivo para a casa de Albert com a intenção de matar e enterrar o animal para acompanhar sua degeneração. E assim se inicia uma bizarra relação de amizade entre duas pessoas improváveis, mas esquisitas o suficiente para embarcarem em uma viagem com várias ilegalidades e situações ridículas, culminando na visita a um jardim de cadáveres.

Ao invés de sua religião e comunidade darem o apoio e conforto que necessita nesse momento terrível da vida, Shmuel se vê assolado por imagens perturbadoras e não encontra consolo nas palavras do rabino. Para os judeus há a ideia de que, após a morte, uma parte da alma da pessoa fica no corpo, ao menos até que este se torne pó. Isso o preocupa ao ponto de se perguntar sobre o estágio de decomposição de sua falecida companheira. O pensamento de que ela, um amor verdadeiro, apesar de os casamentos serem arranjados entre a comunidade, está em sofrimento, não o deixa seguir em frente.

Os filhos de Shmuel, ao perceberem o comportamento alterado do pai, desconfiam que este teria comido um dybbuk, um fantasma atormentado de acordo com o folclore judeu. No caso, o espírito de sua esposa falecida, que teria retornado para vagar pela casa. Os dois garotos então buscam formas de exorcizar Shmuel, que se mostra cada vez mais irredutível com a ideia de descobrir o que acontece com um corpo humano debaixo da terra. Esse caso do dybbuk e sua influência na comunidade judaica foi também explorado no filme Um Homem Sério (A Serious Man, 2009), dos irmãos Coen.

O filme possui ótimas cenas com efeitos especiais práticos utilizando stop motion, como as que mostram um dedo sendo descarnado até virar um botão de rosa e a do porco de decompondo até virar pó. São momentos um tanto quanto macabros, remetendo às cenas de decomposição de demônios do primeiro Evil Dead de Sam Raimi.

Ao Pó Voltará é um filme sobre luto e aceitação, com alguma comédia, dedicado à memória de uma familiar do diretor, Linda Snyder. Apesar da idade e de sua aparência, Matthew Broderick continua com a mesma expressão carismática da década de 1980, mesmo fazendo o papel de um solitário professor acossado por um judeu ortodoxo com ataques de raiva, garantindo gafes e piadas pontuais em momentos oportunos, apesar de mórbidas. É um filme singelo, mas de conteúdo poderoso, fazendo a reunião de humor negro e drama, contrapondo e unindo ao mesmo tempo ciência e religião.

Ao Pó Voltará (To Dust, 2018)
Diretor: Shawn Snyder
Gênero: Drama; Comédia
Elenco: Géza Röhrig; Matthew Broderick
Duração: 1h45min