Hollywood enquanto indústria sempre procurou financiar projetos como uma espécie de linha de produção com etapas bem definidas, usando um tipo de manual de montagem que os executivos dos grandes estúdios faziam os diretores seguirem. Filmes de gênero eram obras bem definidas e delimitadas. Mas alguns malucos a partir do final de década de 1960 resolveram se aproveitar de brechas no sistema e crises de bilheteria para injetaram cinema autoral nos projetos. O resultado foi uma inundação de sangue nas salas de cinema mas, boiando em meio ao líquido vermelho, os executivos encontraram muito dinheiro.
Logo, sujeitos como Walter Hill, Martin Scorsese, Brian De Palma e Francis Ford Coppola estampavam capas de revistas com matérias que os acusavam, de um modo ou de outro, de fazerem filmes apelativos e brutais. Mais que isso, os filmes produzidos por esses quatro diretores, junto a todos os demais que fizeram parte da Nova Hollywood, traziam histórias densas e realísticas. Eram obras conectadas ao espírito da época, de questionamento de valores, rebeldia e revolta social. Mas havia uma espécie de maçã envenenada no cesto. Um fruto alienígena vindo de uma galáxia distante.
George Lucas, melhor amigo de Coppola, era um desses diretores subversivos. Após o experimental THX 1138 (1971) e da comédia adolescente Loucuras de Verão (American Graffiti, 1973), Lucas veio com o projeto Star Wars. A saga galáctica foi um enorme sucesso, maior que qualquer um poderia imaginar naqueles tempos. Havia títulos de ficção científica na Nova Hollywood, como Corrida Silenciosa (Silent Running, 1972), mas o Guerra Nas Estrelas de 1977 atingiu o coração do público. Era de longe o projeto mais comercial daquele movimento que mingou no O Portal do Paraíso (Heaven’s Gate, 1980), obra de Michael Cimino que quase faliu um estúdio.
Star Wars deu o tom do que seria o cinema da década de 1980. Seria mais comercial, mais…Star Wars! Então, o que na verdade diferenciava o cinema de Star Wars de um Taxi Driver? Não era apenas o gênero. A jornada do herói de Luke Skywalker era bem diferente das jornadas sombrias do taxista Travis Bickle ou a do Capitão Willard. Era mais acessível ao grande público. Basicamente, era uma fantasia sem sangue. Disparos de armas laser e espadas de luz decepavam mãos, mas cauterizavam o ferimento ao mesmo tempo. Nem o criador conseguia levar a sério sua criatura. “Tenho cinquenta stormtroopers atirando em três pessoas a 3 metros de distância e ninguém sequer fica machucado. Quem vai acreditar numa coisa dessas?”, falava um George Lucas em meio ao caos da gravação do primeiro longa Jedi.
Vendo Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), já notei um Steve Rogers em meio à Segunda Guerra portando, além do escudo, armas de fogo. O problema de transportar um personagem como esse para o “mundo real” era que o Rogers de papel era daqueles heróis que considerava toda vida sagrada. Então como convencer o público que um carinha lutou na guerra apenas atirando um escudo para nocautear os soldados nazistas? Então, eis que o Steve Rogers estava lá com seus cospe-fogo, ainda que o resultado não era retratado como em uma obra do Sam Peckinpah ou do Michael Mann, mostrando o buraco da bala em ângulos que permitiam ao espectador refletir: “esse se fudeu mesmo”.
Em Vingadores (The Avengers, 2012), um Loki meio impiedoso chegou a surpreender. Mas não muito. Logo, a invasão alienígena provocaria uma cena de destruição urbana semelhante às dos combates em terras japonesas entre monstros e robôs gigantes. As vítimas seriam apenas números.
Em Capitão América – Soldado Invernal (The Winter Soldier, 2014), a expressão mais realística de violência foi o espancamento do Capitão pelo outrora amigo, deixando hematomas evidentes ainda que nenhum traço de hemorragia. Nem um nariz quebrado, parte da anatomia que costuma jorrar sangue ao receber uma boa porrada. Tudo seco. As armas energéticas da Hydra também ajudaram bastante a ocultar o sofrimento da guerra. Disparos que provocam ferimentos sem sangue. O personagem é atingido, cai, faz a expressão de dor, mas é só isso. A ausência do líquido vital deixa perceptível a teatralidade da coisa.
Thor Ragnarock (2017), de Taika Waititi, continuou reafirmando a estéril representação da violência nos filmes da Marvel. Declaradamente uma comédia de aventura, condizente com o estilo do diretor, o filme apresenta a destruição de um povo, dizimado por uma deusa beligerante. Dezenas tombam em batalha perante as espadas de Hela, que cortam, penetram e transpassam corpos em armaduras, mas são tão eficazes quanto os sabres de luz dos guerreiros Jedi. Não há sangue. Apenas gritos genéricos de dor pronunciados por guerreiros genéricos em coreografias mais elaboradas que as séries Super Sentai japonesas. Quando o próprio Thor perde um olho em combate contra a vilã, uma mancha vermelha é apresentada ao redor de uma órbita vazia, mas a dor e o sofrimento do personagem são genéricos. Até certo ponto justificável por ser um guerreiro Deus no frenesi do combate.
Mas foi em Guardiões da Galáxia Vol. 2 (2017) que a estéril violência cenográfica é definitivamente afirmada. As cenas mais graficamente violentas ocorrem em um motim entre o grupo de mercenários espaciais liderados por Yondu. A parcela da tripulação contrária ao motim é lançada ao espaço, onde congelam e morrem. Quando Yondu é libertado, usa sua flecha teleguiada para eliminar os amotinados. Logo, dezenas de corpos sem vida vão despencando em câmera lenta no interior da espaçonave em um massacre que, em termos de números, possivelmente supera qualquer filme de ação moderno. A flecha transpassa os corpos dos mercenários, que caem ao som onomatopeico “ahhh”. O líder morre em um incêndio, mas enquanto seu corpo é incinerado, a cena aparenta ser um desenho animado da Warner, quando um personagem é explodido mas logo estará tudo bem novamente.
Atualmente a Disney é a detentora tanto de Star Wars quanto da Marvel. Logo, as duas maiores franquias cinematográficas do momento são produtos de uma mesma empresa, associada a entretenimento infantil. Tanto Star Wars quando as produções Marvel possuem pontos em comum. Ao analisarmos quaisquer aspectos de ambos, devemos ter em mente que são, acima de tudo, blockbusters, cinema para as massas. Ainda que surjam picos pontuais de ousadia aqui e ali, são produtos comerciais e devem se ater a um padrão pré-definido, sempre orientados para uma faixa etária o mais abrangente possível, especialmente aquela fatia que frequenta as salas de cinema com mais frequência, os jovens.
E assim os títulos são produzidos de tal forma a receberem uma classificação baixa, geralmente a PG-13 (Parents Strongly Cautioned) nos Estados Unidos. Ou seja, não recomendados para menores de 13 anos. Curiosamente, essa classificação indica “sequências intensas de violência e ação”. Mas, na prática, um filme PG-13 pode apresentar cenas rápidas de nudez frontal, um pouco de “fuck you”, mas nunca “motherfucker”, e violência sem sangue. Ou seja, até um anime como Cavaleiros do Zodíaco possui mais cenas intensas de violência e sofrimento que um filme da Marvel.
Assim, o teatral golpe de espada seguido do grito da vítima que se atira ao chão, a multidão apavorada que é devorada por uma espécie de gosma gigante alienígena ou ainda o soldado da shield que cai vítima de um raio laser mortal, porém cauterizante, continuarão se repetindo. Uma espécie de versão moderna daqueles combates da série televisiva do Batman, aquela com o Adam West, quando a cada soco cenográfico uma onomatopeia pipocava na tela para deleite dos espectadores.
Lá atrás, sujeitos como George Lucas e Steven Spielberg conseguiram fazer as plateias involuírem com seus filmes de fácil assimilação e indicaram o novo padrão a ser perseguido pelos estúdios. Atualmente, vários diretores de renome correm para a televisão e para as empresas de streaming alegando que os filmes de super heróis da Marvel arruinaram o cinema.
Mesmo com todo o hype impulsionando o sucesso dessas franquias, tudo não pode ser resumido a apenas marketing para sustentar produtos ruins. É inegável que a Disney/Marvel vêm conseguindo sim produzir filmes divertidos, capazes de serem vistos por toda a família. E, por vezes, é apenas de umas merecidas horas de diversão que o público necessita.
Ademais, esse fenômeno pode ser benéfico para o cinema arte. Com o dinheiro que os grandes estúdios arrecadam nas bilheterias desses blockbusters, podem se sentir seguros em investir em alguma produção com menos magnetismo financeiro. Outra consequência positiva está na exposição de novos talentos ou daqueles que não possuem grande projeção. Um diretor autoral como Taika Waititi, por exemplo, ganha fôlego para produzir novos projetos.