Os países do continente asiático já travaram várias guerras entre si e até com nações de outros continentes. Em dados momentos, o Japão invadiu a China e a Coréia. Durante a Segunda Guerra, também assumiu o controle do Vietnã, que era colônia da França, derrotada por Hitler. Apesar da semelhança física entre seus povos, ao ponto de os ocidentais nem saberem diferenciar uns dos outros, os conflitos eram estimulados por estigmas e preconceitos que marcaram gerações e deixaram ressentimentos que ainda perduram até hoje.
Algumas produções cinematográficas ajudam a formar uma ideia de como tais conflitos se desenrolaram. Em filmes de Bruce Lee, por exemplo, a rivalidade e o ressentimento já foram explorados pelo viés das artes marciais, onde os japoneses consideravam os chineses lutadores inferiores, com o foco na disputa entre o Karatê e o Kung Fu. O filme Flores do Oriente (The Flowers of War, 2011), do diretor chinês Yimou Zhang, retrata o ataque japonês à cidade chinesa de Nanquim, em 1937. A invasão nipônica na Coreia também deixou cicatrizes espirituais na nação. O livro Devoradores de Sombras, do jornalista britânico Richard Lloyd Parry, já resenhado aqui no DP, permite conhecer algumas das consequências dessa passagem histórica dolorosa e como marcaram os dois povos de forma negativa.
O filme A Criada (The Handmaiden/Ah-ga-ssi, 2016) se passa na Coreia justamente durante o período de ocupação japonesa, que se iniciou em 1910 e prosseguiu até o final da Segunda Guerra Mundial. A mulher a que o título se refere, a princípio, é uma jovem coreana contratada como empregada em uma mansão localizada em uma área isolada. Em um regime de trabalho de tempo integral, Sook-Hee (Tae-ri Kim) deve se dedicar a atender a todas as necessidades e desejos de Hideko (Min-hee Kim), a sobrinha do proprietário do local, Kouzuki (Jin-Woong Cho). Vinda de uma família extremamente pobre, o trabalho representa uma grande oportunidade naquelas circunstâncias.
A jovem lady e sua serva parecem simpatizar quase que imediatamente uma com a outra, e logo o relacionamento entre elas se torna cada vez mais íntimo. Hideko aparenta ser uma jovem frágil, assombrada pelo fantasma da mãe, que se enforcou em uma árvore do jardim. Agora ela é quase que uma prisioneira de Kouzuki, cuja principal fonte de riqueza é um acervo enorme de livros raros com contos pornográficos, os quais são comercializados com clientes de todas as partes do mundo.
A biblioteca fica em uma parte da mansão proibida para os empregados. Lá, Kouzuki recebe seus convidados para sessões nas quais Hideko lê os livros, para a excitação do público masculino. Algumas das cenas mais bizarras do filme ocorrem durante as leituras. Assim como Sook-Hee, ela também, de certa forma, é uma criada, uma escrava do tio. A chegada do Conde Fujiwara (Jung-woo Ha), para ensinar pintura à Lady Hideko, desequilibra as relações entre todos, revelando e disparando as engrenagens da cobiça, do ódio, da traição e da vingança que levarão aos próximos atos.
Kouzuki é rico e estimado, mas é um homem frustrado por conta de sua nacionalidade. Atraído pela cultura nipônica, cultiva hábitos e costumes japoneses, se esforçando para simular até mesmo o sotaque dos invasores. É de longe o personagem rico e mau da história, ao ponto de manter uma sala de torturas repleta de partes humanas em jarros. Sua língua preta pelas tintas dos livros reforça visualmente sua índole perversa.
Dividido em três atos, A Criada se descortina em um suspense repleto de personagens capciosos, conspirações, mudanças de lado, jogos de cena, revelações e sedução, mostrando um cinema coreano bastante ousado e criativo. A longa duração do filme, com quase três horas, e a divisão em partes quebram um pouco o ritmo, reduzindo a velocidade mais que o necessário em alguns pontos. O recurso narrativo da divisão em partes, incluindo um retrocesso temporal para apresentar fatos já acontecidos, mas por outro ponto de vista, ou revelar bastidores de uma ação já ocorrida contribuiu apenas para tornar a história mais longa e até denegriu um pouco o roteiro, tornando-o “explicado demais”.
No momento em que o espectador já está capturado pela trama, querendo saber o que acontecerá em seguida, o filme faz essa “quebra” para explicar pontas soltas e mostrar outros ângulos de acontecimentos passados, correndo o risco de dispersar a atenção de um espectador que já estava capturado.
A Criada é um suspense com elementos históricos que se alimenta de ressentimentos e traições entre amantes, familiares e amigos. Recorda fatos delicados tanto para japoneses quanto para coreanos, apresentando pessoas que renegam seu país, sua família e cultura para tentarem assumir outras identidades como cidadãos de outra nação, alguns por necessidade de sobrevivência, outros por avidez.
O diretor de A Criada, o coreano Chan-wook Park, ganhou reconhecimento pela chamada “trilogia da vingança”, formada pelos filmes Mr. Vingança (Boksuneun naui geot, 2002), Oldboy (o original de 2003, não o remake americano) e Lady Vingança (Chinjeolhan geumjassi, 2005), todos contos de, óbvio, vingança, com bastante violência gráfica. Aconteceu que A Criada, distribuído pela Amazon, terminou sendo o filme de maior bilheteria do diretor nos Estados Unidos, fazendo muito sucesso também no Reino Unido.
O fato de ter cenas de sexo com asiáticas, a expectativa de um novo banho de sangue filmado por Chan-wook ou o fato de ter sido baseado no livro Na Ponta dos Dedos (Fingersmith no original), escrito pela inglesa Sarah Waters, certamente ajudaram a promover a película, mas o filme tem suas qualidades individuais. Em vários momentos o exagero na reação dos personagens diminui o filme, o tornando teatral demais, inclusive nas intensas e longas cenas de sexo, mas as referências históricas e culturais, além da bela fotografia e dos cenários tipicamente orientais constroem um filme bastante convidativo para quem quiser arriscar sair um pouco do circuito de Hollywood.
A Criada (The Handmaiden/Ah-ga-ssi, 2016)
Gênero: Drama/Suspense/Romance
Duração: 2h48min
Diretor: Chan-wook Park