Em tempos ainda memoráveis o SBT costumava transmitir doses concentradas de filmes de baixo orçamento nas suas sessões de cinema espalhadas pela programação, especialmente no Cinema Em Casa. A prática formou uma geração de aficionados por terror e ficção científica.
Dentre as obras reprisadas com frequência está A Coisa (The Stuff, 1985). Quando criança, o achava um filme mais divertido que assustador. Adulto, ao revisitá-lo, continuei com a mesma impressão, mas o captei de forma bem mais clara suas piadas satíricas, que na verdade só são menos explícitas que as das comédias produzidas pelo trio ZAZ.
A Coisa é uma crítica ao capitalismo, o american way of life, a dualidade da guerra fria, o conformismo e a perseguição da normatização de uma sociedade convenientemente guiada por um grande mestre. Ou talvez apenas a representação de um produto de consumo perfeito, um vício introduzido pelo marketing e reforçado por uma fórmula secreta que torna todos subservientes. Caso lançado hoje, teria todos os ingredientes para ser chamado de “pós-horror”.
No início do filme, vemos um minerador encontrando uma espécie de nascente onde borbulha uma substância branca e cremosa. O sujeito faz o que qualquer pessoa normal faria numa situação assim. Mergulha um dedo na substância e o leva à boca para experimentar! Acha delicioso e manda o colega de trabalho fazer o mesmo. Assim nasce A Coisa, uma espécie de iogurte que, com a ajuda de uma intensa campanha de marketing e de seu sabor literalmente irresistível, começa a dominar o mercado alimentício. Ninguém quer mais saber de sorvete. Todos agora só querem A Coisa.
Claro que a situação chateia os concorrentes sorveteiros, que se reúnem e contratam um espião industrial para descobrir a fórmula secreta do produto que os ameaça. É então que somos apresentados ao herói, ou anti-herói, do longa. David Mo Rutheford (Michael Moriarty) é um agente corrompido do sistema americano. Expulso do FBI, se apresenta como um mercenário ganancioso, alguém que é capaz de qualquer coisa por dinheiro.
Explica que Mo é uma abreviatura de “More”. Qualquer coisa que deem a ele, o sujeito quer mais. O homem é o capitalismo financeiro personificado. Sua cena de introdução é suficiente para vermos todas as suas qualidades: arrogante, orgulhoso, vingativo, cara de pau, perspicaz e bom de briga.
Rutherford cai em campo para descobrir a origem da Coisa. Primeiro, visita o estúdio onde as propagandas do produto são produzidas, se apresentando à responsável pelo marketing, Nicole (Andrea Marcovicci), como uma espécie de barão do petróleo que precisa de uma campanha publicitária. O espião exala autoconfiança e simpatia. Interrompe as gravações em curso no local, manda todos fazerem um intervalo e dá em cima da mulher descaradamente.
Como segundo ponto da investigação, Mo vai visitar o responsável legal pela liberação da Coisa para consumo. Descobre que o conglomerado por trás do novo produto conseguiu driblar o órgão regulamentador de alimentos, o FDA, conseguindo autorização para comercialização. Por fim, Mo chega ao local onde brotou A Coisa, uma cidadezinha no interior do país.
Stader parece uma cidade fantasma. Casas caindo aos pedaços, ninguém nas ruas além de alguns comerciantes que se comportam de forma estranha. Eis que surge mais um aliado, Chocolate Charlie (Garret Morris), um fabricante de chocolate que resolve investigar por conta própria o novo alimento que também está arruinando seu negócio.
As cenas de investigação de Rutherford são intercaladas pelas de Jason (Scott Bloom) e sua família. O flagra A Coisa se mexendo sozinha dentro da geladeira e se torna um rebelde, se recusando a comer aquilo, chegando a destruir até os estandes de um supermercado. O ato de rebeldia o coloca no radar do espião industrial, que vai ao seu resgate.
Assim, se forma uma união improvável entre uma criança, um espião industrial, uma especialista em marketing e um dono de fábrica de chocolate contra uma população a beira de ser dominada totalmente pela Coisa. A solução possível para igualar as forças é recorrer ao Exército, ao menos um não oficial.
Entra em cena o Coronel Spears (Paul Sorvino), um homem que reúne todas as características negativas atribuídas ao exército americano e ao ser humano em geral. Spears é uma militarista que acredita na guerra iminente contra os comunistas e se mostra tão racista quanto um Hitler. Mesmo assim, Mo consegue o convencer a liderar sua tropa de paramilitares para destruir a fábrica da Coisa.
A Coisa é o que parece, ao menos assim foi vendido e reconhecido pelo público. Um filme de terror de baixo orçamento que parece ter usado todos os seus recursos na construção de alguns efeitos especiais práticos que por vezes funcionam muito bem, enquanto que em outras parecem terem saído das produções da Televisa para os episódios de Chapolin, ainda que nada disso atrapalhe a imersão do espectador. Saudades do tempo em que víamos uma cena e ficávamos nos perguntando, tal qual em um espetáculo de mágica, como conseguiram fazer aquilo. O CGI de hoje tornou tudo muito óbvio e opaco.
O diretor Larry Cohen justificou que foi justamente essa promoção do filme como um terror que o levou a não ser um sucesso. Ele via A Coisa como uma espécie de sátira ao consumismo, uma comédia. Cohen comentou que sua inspiração para a história foi abordar o consumismo e ganância de corporações que vendem produtos nocivos para a saúde, incluindo comida fast-food que, mesmo sabendo fazer mal, as pessoas continuam consumindo.
Considero A Coisa uma peça de genialidade subestimada no recorte cinematográfico dos anos 1980, onde o gênero slasher tomou o foco comercial do terror.
Cenas memoráveis:
O alimento que une toda a família: Jason tem de fingir que também experimentou A Coisa para continuar sendo aceito na família. Obediência à pátria e à família formando uma nação unida e homogênea. No caso é literal pois o iogurte transforma as pessoas em carcaças vazias.
O ataque da Coisa: em um quarto de hotel, uma enorme quantidade da substância ataca Mo e Nichole, mas acaba atingindo uma pessoa já dominada. A cena impressiona pela ótima aplicação de efeitos especiais práticos.
Estão comendo A Coisa ou ela está comendo vocês? A Coisa foi desmascarada, mas Mo descobre que seus contratantes e o ex-concorrente agora se uniram para relançar o mesmo produto sob outro nome, O Sabor!! É então que o espião industrial os obriga a provarem eles mesmos o produto.
A Coisa (The Stuff, 1985)
Direção: Larry Cohen
Gênero: terror
Elenco: Michael Moriarty; Andrea Marcovicci; Garrett Morris
Duração: 1h27min