Por uma vida menos ordinária

O universo lunático de Apenas Um Show é um retrato realístico da nova geração de jovens adultos.

Psicólogos, sociólogos, filósofos e demais definiram os nascidos nas décadas de 80 e 90 como a geração Y, os millennials. Aqueles que Tyler Durden chamou de Filhos do Meio da História, aqueles que não participaram de grandes guerras nem de grandes depressões. São a geração da internet. Mais inteligentes que sua geração anterior, mas sem grandes ambições ou determinação. É fácil identificar o tipo: possui pra lá de 20 anos, mora com os pais, deixou alguns cursos inacabados e ainda não conseguiu definir exatamente o que quer da vida.

Enquanto Tom Cruise lutava na cidade grande como barman à noite para pagar a faculdade sonhando em ser um executivo de sucesso, ou percorria o país com um taco de sinuca desafiando os melhores jogadores de cada cidade, o millennial será encontrado deitado de cueca no sofá da casa dos pais, alternando dias de indecisão e insegurança entre vídeo game, filmes pornôs, revistas em quadrinhos, séries e programas de tv.

Se percebeu que é um dos Y’s, continue a ler. Apenas Um Show é feito para você.

J.G. Quintel é o criador da série, que estreou em 2010 na Cartoon Network. A animação acompanha a rotina de Mordecai e Rigby, um gaio azul e um guaxinim, em um trabalho sem futuro como zeladores de um parque, se esforçando para comprarem ingressos para shows de rock e passando o resto de seus dias sem rumo jogando video game retrô e apenas sonhando com garotas porque são muito tímidos para chamar alguma para sair.

Os episódios geralmente começam de forma bem normal. Benson, o chefe que é uma máquina de chicletes com pernas e braços, passa uma tarefa normal aos dois zeladores, que logo ficam entediados e bolam uma forma de se livrarem do trabalho. A partir daí, qualquer tipo de maluquice sem sentido pode acontecer: viagens no tempo e espaço, portais para outras dimensões, demônios e monstros do inferno surgem do nada. Um dos empregados do Parque é o fantasma de uma mão, cujo nome é Fantasmão! Esse é o nível de criatividade de que estamos falando.

Quintel trabalha com uma equipe de cerca de 40 pessoas, entre roteiristas, desenhistas e animadores. Um único episódio, com 11 minutos de duração, leva nove meses para ficar pronto. Em uma sentada de sofá, um fã pode assistir uma dúzia de episódios de uma vez, o que deixa até mesmo as crianças intrigadas. O time chega a produzir 20 episódios ao mesmo tempo.

Em um episódio, Rigby estraga uma pintura de Benson, e Mordecai tem de restaurar para que ninguém perceba. Em um flashback lembra quando, no curso de artes, pintou o retrato de uma garota e ela chorou de desgosto quando viu o resultado. Quintel disse que isso aconteceu com ele, também um estudante de artes na época. A garota era sua namorada.

Apesar de todos os acontecimentos insólitos, a série se chama Regular Show, no original. Por que não Weird Show? Porque Regular soa melhor e, apesar das bizarrices, todos os personagens se comportam e se tratam como pessoas normais, dessas que você conhece ao longo da vida. Benson é o chefe temperamental, Musculoso o maluco da turma e Saltitão, um pé grande imortal que age como o grande paizão do grupo. Aquele para quem todos correm para pedir ajuda porque ele vai saber o que fazer. Já Mordecai e Rigby são os melhores amigos que não deixam de brigar entre si partindo até para agressão física muitas vezes.

Os episódios são repletos de referências à cultura pop, especialmente de obras dos anos 80, sejam vídeo games, filmes ou músicas. As Grandes Aventuras de Pee-Wee, De Volta Para o Futuro, Indiana Jones e Evil Dead são alguns dos mencionados ao longo dos episódios. A dupla ainda usa TV de tubo, videocassete e vídeo game de cartucho. Parece mesmo irresistível para um millennial saudosista.

Jessica Gentile, do Flavorwire, escreveu um artigo afirmando que a série é um retrato realista da nova geração de jovens adultos:

Apenas Um Show foca na parcela do público jovem que raramente tem destaque na televisão: aqueles que possuem baixa escolaridade e pertencem a classe trabalhadora. A televisão sempre apresentou uma visão distorcida da vida da classe média norte americana. A inexplicável afluência do elenco de Friends é a regra, não a exceção, e quando a TV se dedica ao estilo da classe média – como em The Middle (Uma Família Perdida no Meio do Nada) e Bob’s Burgers – é quase sempre em um contexto familiar. Há raras exceções, como a comédia Broad City, a qual retrata as desventuras das amigas Abbi e Ilana, que vão a outros bairros atrás de caras mais bonitos, bons empregos e uma maconha da boa. Mas até mesmo elas podem pagar o aluguel de Nova York. Depois do ano 2000 até 2010 muito poucos programas usam como plano de fundo a recessão econômica, até mesmo levando a imaginar que ela nunca existiu.

Enquanto existem milhões de jovens que sobrevivem nos porões das casas dos pais, você não vê esse tipo de situação acontecendo na TV. De acordo com um estudo do Pew Research Center, de 2012, um terço dos jovens entre 18 e 31 anos estavam vivendo com seus pais. Mas nas telinhas, até as personagens principais de 2 Broke Girls (Duas Garotas em Apuros) moram em um loft.

Então somos jogados em uma realidade surreal, onde uma das poucas obras que retrata essa parcela da juventude é um desenho animado. Apenas Um Show é um dos mais fieis retratos desta geração de novos adultos, fato que se torna ainda mais inusitado por serem dois animais silvestres.

Em sua sétima temporada, Apenas Um Show é mais ambicioso que nunca. Seu apelo e ambição ultrapassam os limites do horário em que é exibido e seu público-alvo. De acordo com o Nielsen Media Research, mais de um quarto dos 2.6 milhões de espectadores do programa estão acima dos 18 anos. Tal qual seu primo, Hora de Aventura – que o supera em termos de popularidade – há uma surpreendente camada de profundidade em meio a unicórnios, ogros e piadas de peido que povoam Apenas Um Show. Enquanto Hora de Aventura enfatiza as agruras da adolescência através de seu protagonista Finn, vivendo no Reino de Ooo em uma era pós-apocalíptica, Apenas Um Show trata da próxima fase de desenvolvimento, a transição para a vida adulta, em um mundo mais semelhante ao nosso.

A série se concentra demograficamente em um público jovem que raramente é retratado na TV: a classe trabalhadora de baixa escolaridade. Mordecai desistiu da Escola de Arte. Rigby nem mesmo terminou o Ensino Médio (em um episódio da 7ª temporada finalmente ele consegue o diploma). Os dois estão aprisionados em uma espécie de profissão-purgatório, se tornando parte da paisagem de um parque local, onde dividem um pequeno quarto. Não têm cafés da manhã pretensiosos ou iPhones – apenas uma cozinha compartilhada e um computador desktop que dividem com seus companheiros de trabalho. Seu transporte é o carrinho de golfe do Parque.

Em Apenas um Show, o inimigo não é necessariamente a riqueza – o proprietário do Parque é um rico e benevolente homem com cabeça de pirulito e seu amável filho – mas a ganância. O excesso e o desperdício decididamente não são legais. Embora a série não pregue esses valores, estão como plano de fundo na narrativa com um inegável contexto socioeconômico: Os bons garotos devem trabalhar mais para comprar ingressos para shows, mas são eventualmente recompensados com assentos na fileira da frente.

Em um episódio da 4ª temporada, o único e amado carrinho de golfe do Parque é roubado por um grupo de meliantes. Com a intenção de recuperar seu único meio de transporte, Mordecai e Rigby se infiltram em um clube de campo, onde descobrem o mais perverso e bizarro dos planos: os milionários locais inventaram uma máquina que pode transformar qualquer objeto em uma privada de ouro e então a atiram para o espaço. Por quê? Porque é o modo dos ricos celebrarem o solstício de verão.

Mordecai e Rigby conseguem fazer com que o líder dos ricaços caia em sua própria máquina. A trama é absurda, juvenil e hilária, mas também representa profundamente a luta de classes em Apenas um Show. Os vilões mais assustadores são ricos, brancos e com uma ganância tão vil que seu único prazer provém de destruir os pertences dos outros. Como um dos milionários explica: “A única coisa que importa na vida é transformar os objetos dos outros em privadas”. Esse sentimento é bastante familiar em um mundo no qual grandes lojas e condomínios de luxo ameaçam os lares e os meios de vida da classe trabalhadora.

A estética infantil de Apenas Um Show permite retratar um estilo de vida operário com um toque de leveza. O aspecto sórdido de um trailer de Parque se torna mais palatável e até quase adorável quando é habitado por um ogro obeso, chamado ironicamente de Musculoso. Na realidade na qual a dupla vive, ganhar uma torta de chocolate porque não podem pagar por uma caixa de mistura pronta para bolo que custa um dólar se torna uma aventura alegre, a despeito de ser uma situação deprimente. O mundo colorido de Apenas Um Show é um antídoto necessário para o desproporcional cenário de sitcoms – um que apresenta a sombria realidade financeira que muitos millennials enfrentam.

Deixando as teorias de lado, a animação segue continuando um sucesso, agradando adultos e crianças. Não ligue para os olhares desconfiados da sociedade te flagrando enquanto você está largado no sofá assistindo Mordecai e Rigby também largados no sofá.