O Árabe do Futuro – Uma Juventude no Oriente Médio

Para um ocidental é muito difícil compreender com clareza a natureza dos conflitos milenares no Oriente Médio. Necessário antes de tomar posição antecipada e emitir opiniões equivocadas se debruçar em livros, notícias e documentários sobre o tema. Assim que se constrói um conhecimento mais preciso, ainda que nada supere a experiência pessoal, o contato direto e real com a região. Como isso não é possível para todo mundo, parece válido enxergar pelos olhos de alguém que viveu lá.

Para isso, a série de HQ’s do Árabe do Futuro é excelente. Nela, Riad Sattouf, autor da obra, apresenta sua vivência pessoal durante a infância e adolescência na Líbia e na Síria, a partir do início da década de 1980. Sattouf já foi colaborador do jornal francês Charlie Hebdo e, além de quadrinista, também é roteirista e diretor de cinema. O Árabe do Futuro têm sido um sucesso, já rendendo o prêmio principal no Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême.

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O primeiro volume da série, cobrindo os anos de 1978 a 1984, mostra como os pais de Riad se conheceram. Ele, Abdel Razak, fora o único da família a se dedicar aos estudos, aproveitando também para fugir do alistamento militar, chegando a concluir um doutorado em História em uma universidade em Paris. Ela, Clémentine, natural da Bretanha, também foi estudar na França. O destino aconteceu, uniu o casal e o resultado foi Riad, um pirralho com extensa cabeleira loura que chama a atenção de todos, para o bem e para o mal.

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Razak declina de um convite para ser professor assistente em Oxford para assumir uma colocação na universidade de Trípoli, na Líbia. Assim, o pequeno Riad, com apenas dois anos, parte com sua família para o início de sua jornada pelo mundo árabe. E assim o leitor passa a acompanhar, pelos olhos dessa criança, como era viver na Líbia daquela época, dominada pelo ditador Muammar Kadafi e, depois, na Síria em poder do Hafez Al-Assad.

Riad, nascido na França, é tão estrangeiro quanto qualquer outro. Embora ainda uma criança, experimenta um forte choque cultural, especialmente por não entender a língua. Sua aparência o torna uma espécie de chamariz exótico, o que termina fazendo com que seja perseguido por outras crianças, inclusive alguns primos, que o chamam de judeu, o que quer dizer para eles algo próximo ao diabo.

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Tanto a Líbia quanto a Síria daquela época são mostradas como países decadentes, com infraestrutura precária, serviços essenciais praticamente inexistentes, educação pobre e futuro incerto. A única coisa que parece funcionar de verdade é a religião, os costumes conservadores e a cultura engessada. Na Líbia, as pessoas dependiam da comida fornecida pelo governo, insuficiente e de baixa qualidade. Na Síria, nas reuniões familiares, as mulheres comiam os restos deixados pelos homens.

Razak, com suas contradições e certa dose de hipocrisia, é responsável pelas partes mais cômicas da história. Apesar da experiência de ter morado na França durante anos e de ter atingido o mais alto grau de educação entre sua família, de analfabetos, as tradições árabes e religiosas parecem ameaçar sobrepujar qualquer senso de razão ao ponto de arrastar sua esposa e agora dois filhos para uma nação arrasada em vários aspectos. Clémentine parece se anular enquanto ocidental e mulher, deixando-se levar pelo marido, passando os dias cuidando dos filhos e presenciando algumas barbáries, como o caso do cachorrinho destroçado na rua por crianças e adultos.

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Ainda que algumas cenas possam ser chocantes, o tom predominante na HQ é de humor, às vezes involuntário, às vezes mais ou menos negro. Uma das cenas mais hilárias é quando dois primos ensinam a Riad os piores palavrões em árabe, para em seguida ele ter uma aula prática, sendo xingado no mais alto nível. Há momentos para rir, outros para refletir, e alguns para chorar, e é essa alternância de sentimentos que provoca no leitor um dos pontos que faz da obra uma grande leitura.

Um quadrinho dinâmico, curioso, hábil em manter uma narrativa que nunca deixa de prender a atenção do leitor. Seu estilo cartunesco com traços limpos consegue transmitir com clareza as expressões dos personagens, os cenários e ambientação. Predominantemente em preto e branco, mas o autor utiliza uma cor para preenchimento dos quadros, que também serve para indicar a localização do personagem. Azul indica que está na França, amarelo na Líbia, Vermelho na Síria e verde na pequena ilha de Jersey. Além disso, outras cores primárias são utilizadas para ressaltar algum objeto ou fala.

O Árabe do Futuro foi a leitura mais instigante de 2018. Imediatamente ao término desse primeiro volume, encomendei os próximos dois, ansioso por continuar acompanhando as desventuras do jovem Riad pelo Oriente Médio, levando mais choques culturais e aprendendo mais sobre aquele mundo.

Resumo dos volumes seguinte:

2 – (1984 – 1985) – primeiro ano na escola da síria, onde ele deverá se tornar um verdadeiro árabe.

3 – (1985 – 1987) – o ano em que sua família finalmente se divide ante a pressão do regime de Assad.

*4 – (1987 – 1992) – Agora Riad é um adolescente perdido entre duas culturas, com os pais separados. Conta com o maior número de páginas dentre todos. Ainda inédito no Brasil.

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O Árabe do Futuro – Uma Juventude no Oriente Médio (1978 – 1984)

Autor: Riad Sattouf

Editora: Intríseca

162 páginas