Homem Aranha e Wolverine – a Marvel além da Cortina de Ferro

Dentre as histórias do Homem Aranha que se destacaram na década de 1980, está “A Última Caçada de Kraven”, mini-série escrita por J.M DeMatteis e ilustrada por Mike Zeck, publicada pela primeira vez por aqui pela Editora Abril e que até hoje rende republicações. Mas as séries mensais regulares do personagem estavam em uma ótima fase, com histórias escritas por David Michelinie, Peter David e James Owsley. Peter Parker já não era mais um adolescente do colegial. Agora cursava faculdade, havia deixado a casa da tia May e passado a morar sozinho, continuava tirando fotos para o Clarim Diário, a grana continuava curta e, apesar de ter deixado o jeito nerd para trás, ainda era inseguro, confuso e, volta e meia, frustrado em vários sentidos.

Em meio a essa fase, em fevereiro de 1987, chegava às bancas nos Estados Unidos a edição especial “Homem Aranha versus Wolverine”. O encontro de dois dos personagens mais populares da editora prometia o de sempre: uma ameaça genérica se pronunciaria, os heróis se encontrariam meio que por acaso, se desentenderiam, lutariam entre si e depois se aliariam contra o verdadeiro inimigo. A capa, com os dois se digladiando em um cemitério, confirmava essa expectativa. E desta vez não seria de fato diferente, mas a forma como os eventos aconteceriam, o cenário e, principalmente, o inimigo a ser enfrentado, eram bem inusitados para uma HQ de super herói.

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A história contava com roteiro de James Owsley, desenhos de Mark Bright e arte final de Al Williamson. Owsley, nativo do Queens, bairro do amigo da vizinhança, mudaria posteriormente seu nome para Christopher James Priest em 1993, se tornando uma espécie de pastor. Entrou na Marvel em 1979, trabalhando ao longo da carreira em títulos como Luke Cage e Punho de Ferro, Conan The Barbarian, Falcão, Cavaleiro da Lua e posteriormente Pantera Negra, Deadpool e Ka-Zar. Já o Mark Bright trabalhou muito tempo com o título do Homem de Ferro, na fase da armadura vermelha e prateada, marcada pela saga “A Guerra das Armaduras”.

Aqui no Brasil o crossover chegou às bancas pela Editora Abril, publicada na revista mensal do Homem Aranha, nº 94, especial com 100 páginas. A história, de título “Maré Alta”, ocupava 72 páginas. O restante da edição trazia uma aventura do Quarteto Fantástico. Os bons tempos das revistas mix, sem ironia.

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Na trama, o Homem Aranha se depara com os corpos de dois comerciantes da Cozinha do Inferno, bairro de Nova York. O casal, conhecido do “amigo da vizinhança”, fora executado com um tiro na testa. Pouco depois, o herói presencia tiros no Madison Square Garden, após sair de um cinema com a Mary Jane. Em ambos os casos, não consegue a mínima pista dos assassinos. Frustrado por sua incapacidade e pela desorganização em sua vida pessoal, decide deixar o uniforme para trás e sair da cidade, mas é chamado de última hora para acompanhar o repórter do Clarim Diário, Ned Leeds, em uma matéria na Alemanha.

Ned desconfia que uma série de assassinatos acontecidos em Nova York (incluindo os que o Aranha presenciou) foi cometido por um antigo mercenário a serviço da KGB (o temível serviço secreto russo), Charliemagne. Acontece que esse agente que todos pensam ser um homem, na verdade é uma mulher, e amiga íntima de Logan, que também segue para a Alemanha atendendo ao seu pedido de ajuda.

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Por acaso, os dois protagonistas da história se cruzam nas ruas de Berlim e, por meio do seu olfato aguçado, Logan percebe que Peter Parker é o Homem Aranha. Desconfiado do motivo de sua presença naquele país, invade o quarto de hotel onde está hospedado e confirma que ambos estão à procura da mesma pessoa.

Logan convence Peter a não se envolver com o caso e deixar a Alemanha mas, ao voltar para o  hotel, o aracnídeo encontra seu colega do Clarim amarrado a uma cadeira, com a garganta cortada. Ned Leeds era um coadjuvante bastante presente nas histórias regulares do herói, e vê-lo morto em uma cena típica de filmes de gangsters foi tão chocante para o leitor quanto para o protagonista. Os assassinos ainda estão no quarto, e são atacados e mortos por Wolverine enquanto Peter ainda está em choque.

Parker decide ir até o final da trama, mesmo a contragosto de Logan. A trilha de mortes de Charliemagne leva o Homem Aranha a atravessar a cortina de ferro e adentrar a Alemanha Oriental, onde irá entrar em conflito direto com espiões assassinos e contra o próprio Wolverine, que tenta ele mesmo assassinar a amiga por um pedido dela.

 

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Charlie prefere morrer nas mãos do amante a ser torturada pela KGB, algo que o Aranha não compreende e faz com que entre em uma violentíssima luta contra Logan. A história leva a um dos finais mais amargos de toda a saga do Homem Aranha. Uma conclusão que deixa Peter ainda mais arrasado do que quando saiu de Nova York.

Longe de seu país, o Homem Aranha é jogado em uma trama na qual pouco ou nada entende. Parker compreende a lógica de um assaltante matar uma vítima por dinheiro, ou a de um traficante eliminar seus rivais. Sua linha de ação é prender o culpado e entregar às autoridades. Os mocinhos e vilões são bem definidos. Mas na Alemanha Oriental, onde espiões estão prontos a matar por conceitos que ele não entende, seguindo ordens de agências governamentais com hierarquias confusas e burocráticas, não consegue ter uma linha de ação precisa, clara. Os comerciantes mortos na Cozinha do Inferno, que ele conhecia há anos, por exemplo, eram espiões. Criminosos perante a lei.

Durante toda a história, Peter é conduzido por sentimentos como frustração, impotência e medo. Mesmo com todos os seus poderes, é simplesmente incapaz de saber como reagir diante da situação que enfrenta além da cortina de ferro. Aliás, a sequência onde passa pelo muro para chegar à parte oriental do país também mostra um Homem Aranha atemorizado, adentrando em uma zona de guerra, enfrentando atiradores, barreiras com arame farpado e campo minado.

 

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Em um país desconhecido, busca encontrar uma espécie de redenção, uma razão qualquer para não deixar o assassinato de seu colega injustiçado. Porém, percebe que não há um culpado que possa encontrar e prender, e a assassina que estavam investigando, na verdade pode ser a vítima do jogo.

Por outro lado, Wolverine se move com desenvoltura pelo meio da espionagem internacional em plena guerra fria. Aceita que as coisas são como são e é inútil tentar prender alguém que está acima das autoridades civis, encontrar um mandante por trás das ações ou um motivo lógico. Não dá para lutar contra conceitos subjetivos na era do mundo bipolarizado. Logan desde sua criação foi apresentado como um rebelde, alguém disposto a matar se necessário, a jogar sem seguir regras. Porém, sua atuação ao lado dos X-Men sempre manteve o seu lado selvagem contido. Nessa história, vemos o Wolverine assassino logo nas primeiras páginas, usando suas garras sem nenhum remorso contra espiões assassinos várias vezes.

Logan está disposto a até mesmo usar suas garras contra sua amiga e amante, o que motiva a luta contra o Homem Aranha. Tendo presenciado mais de uma vez o sangue frio do mutante, o aracnídeo simplesmente fica apavorado ao enfrentá-lo. Se Wolverine é capaz de matar até alguém de quem ele gosta de verdade, em um acesso de fúria não hesitaria em cortar a cabeça de um colega de uniforme.

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O roteirista consegue apresentar e desenvolver os dois personagens ao longo da história, em um cenário histórico, construindo uma trama factível que leva a um conflito físico e psicológico entre os heróis, de certa forma fazendo uma justaposição entre as divergências políticas que sequestraram o mundo na época. Em um ambiente tão conturbado, um Homem Aranha apavorado mata uma pessoa nessa aventura em uma cena marcante. E não o medo o grande propulsor de intrigas? Medo da guerra nuclear, do comunismo, da nação estrangeira inimiga.

Dentro da cronologia do universo Marvel, a história se situa pouco antes do casamento de Peter com Mary Jane, que aconteceria na edição nº 100 da série em formatinho da Abril. Em seguida chegaria Todd McFarlane, surgiria o Venom, e a Marvel passaria os próximos anos investindo em capas especiais, artes espetaculares e histórias qualquer nota.

Os roteiros de Owsley tinham a sensibilidade de apresentar mais do Peter Parker que do Homem Aranha, um personagem que, apesar dos grandes poderes, sempre foi o lado mais humano do universo Marvel, aquele com o qual o público poderia se identificar mais facilmente. Alguém que não é um milionário, um cientista famoso ou um símbolo da nação. Apenas um cara de Nova York, também amedrontado pelas consequências da guerra fria e que não conseguia honestamente entender as engrenagens políticas e ideológicas que levavam pessoas a cruzarem o mundo para matarem umas às outras.